Um depoimento sério e muito competente sobre o tema
da Teologia da Libertação (TL) pode servir como fonte de informação e
orientação para todas as pessoas que buscam esclarecimentos e a verdade sobre
este assunto, a fim de não faltar com a justiça nas suas opiniões.
A entrevista com Sergio Torres, o teólogo chileno,
tem este caráter. O blog Indagações traz agora
uma parte dessa entrevista, que foi publicada em outubro de 2011, no site do Instituto Humanitas Unisinos (IHU)¹.
Uma leitura muito esclarecedora. Não deixe de ler.
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Entrevistas
Sábado, 22
de outubro de 2011
"A Teologia da Libertação pode ajudar a interpretar o mal-estar global de hoje". Entrevista especial com Sergio Torres
"Tanto a teologia da libertação, por si
mesma, como o Congresso Continental de Teologia de 2012 podem contribuir muito
para abordar de uma maneira nova esses novos desafios", que "não
foram considerados no Concílio, mas temos as ferramentas que tornam possível
enfrentá-los".
Para o teólogo chileno Sergio Torres, o salto
qualitativo promovido pela teologia da
libertação foi abrir a perspectiva contextual na teologia. "O contexto –
afirma – permite aprofundar alguns aspectos da única Mensagem e torná-la mais
credível para pessoas de diferentes culturas". E também agregando outro
"lugar teológico": a presença de Deus na "fé que atua pela
caridade", especialmente entre os pobres.
Torres é cofundador e membro emérito do comitê
coordenador da Ameríndia (www.amerindiaenlared.org), rede de
católicos/as do continente americano que, junto a outras organizações como o Instituto
Humanitas Unisinos – IHU, participou da organização e promoção do Congresso
Continental de Teologia, entre os dias 8 e 11 de outubro de 2012, na Unisinos,
por ocasião dos 50 anos de convocação do Concílio Vaticano II e dos 40 anos da
publicação do livro Teologia da libertação. Perspectivas, de
Gustavo Gutiérrez.
Por isso, nesta entrevista concedida por e-mail à
IHU On-Line, Torres conta os principais
momentos da história da Ameríndia e afirma que celebrar essas
datas significativas em solo latino-americano é também rememorar os momentos de
"grande entusiasmo" vividos pela Igreja continental, que "não só
leu e aplicou o Concílio, mas também o reinterpretou a partir da nossa
realidade social, econômica e cultural".
Entrevista (parte):
[...]
IHU On-Line – A identidade da Ameríndia também é marcada pela reafirmação da
"opção por novos modelos de igreja comunitária e participativa e pela
teologia da libertação como uma contribuição para a Igreja universal". Em
sua opinião, quais são as características centrais desses novos modelos de
Igreja?
Sergio Torres – A história da
Igreja na América Latina depois do Concílio Vaticano
II está marcada por períodos de profunda renovação e vitalidade e por
momentos de dificuldades, recolhimento e frustração. No momento do Concílio
Vaticano II havia na América Latina um grupo muito valioso de bispos
comprometidos espalhados por todo o continente. Alguns nomes são lembrados para
sempre, por exemplo: D. Hélder Câmara, do Brasil,
e D. Manuel Larraín, do Chile.
O teólogo José Comblin, recentemente falecido, propôs a chamar
esses bispos de "pais da Igreja latino-americana". Esses bispos, com
a ajuda de teólogos e agentes pastorais de base, contribuíram para ler o
Concílio a partir da perspectiva da América Latina na Conferência de
Medellín, em 1968.
A partir de então e durante quase 20 anos, a
Igreja do subcontinente experimentou um grande crescimento e vitalidade no
povo, adquirindo uma nova identidade. Seguindo Jesus Cristo e
com uma profunda fidelidade à tradição eclesial, ela assumiu um novo papel
junto aos pobres, deixando de lado a sua posição anterior de legitimar as
classes dominantes da sociedade. Junto com isso houve uma profunda renovação da
liturgia, da catequese, da teologia, da organização eclesial e da evangelização
em seu conjunto, levando em conta as orientações de Medellín e
da Evangelii Nuntiandi e, posteriormente, da Conferência
de Puebla.
Lamentavelmente, a partir da década de 1980,
aconteceu algo inesperado nessa renovada Igreja latino-americana. Produziu-se
uma divisão em seu interior entre alguns setores da hierarquia e alguns
teólogos com relação à interpretação de Medellín e de Puebla,
em particular, quanto à maneira de entender a opção pelos pobres. Algumas
pessoas acreditaram que a opção pelos pobres poderia ser interpretada como uma
expressão marxista. Essa discussão interna levou alguns setores da Cúria
Vaticana a tomar partido e, a partir desse momento, produziu-se um
grande distanciamento e desconfiança entre essas instâncias romanas e os
setores progressistas do continente.
Um momento importante dessa história foram as
duas instruções da Congregação para a Doutrina da Fé, de 1984
e 1986, condenando algumas formas da teologia da libertação. Apesar de as
instruções dizerem que se tratava de "algumas formas", os setores
mais conservadores consideraram que toda a teologia da libertação estava
submetida a suspeitas e, finalmente, condenada. Esse mal-entendido tem estado
presente até agora e criou as distâncias e diferenças de opinião e de atitude
que impediram uma resposta comum da Igreja aos novos desafios dos tempos
presentes. Uma dificuldade séria foi escutar quase exclusivamente a instrução
de 1984 e o silenciamento que não permitiu acolher com o mesmo interesse a
carta de João Paulo II aos bispos do Brasil,
de maio de 1986, em que, depois da primeira instrução, dizia-lhes claramente
que "nós e vocês consideramos que a teologia da libertação é útil e
necessária".
IHU On-Line – Em 2012, comemoraremos o
50º aniversário da convocação do Concílio Vaticano II, aniversário que também
inspira a promoção do Congresso Continental de Teologia. Como essa data pode
iluminar a Igreja no contexto atual?
Sergio Torres – A Igreja da América
Latina e do Caribe acolheu com grande entusiasmo o
Concílio. Inclusive, estava preparada para fazê-lo. Mais ainda, não só leu e
aplicou o Concílio, mas também o reinterpretou a partir da nossa realidade
social, econômica e cultural. O conceito de Igreja como Povo de Deus
foi acolhido com grande naturalidade, pois, nessa época, estava se desenvolvendo
a consciência do povo como um ator importante que assumia o seu papel
protagônico e propunha grandes mudanças na estrutura da sociedade. A cultura
latino-americana, solidária e fraterna, viveu com alegria e entusiasmo a
identidade de uma Igreja comunitária, em que bispos e fiéis, na linguagem da
época, se sentiam parte de um projeto comum e horizontal de Igreja missionária
e renovada.
A história também mostra que, tanto na Europa
quanto na América, depois dos primeiros anos de entusiasmo
pelo Concílio, surgiram diversas interpretações sobre o verdadeiro significado
de seus documentos com as orientações e conclusões pastorais. Na América
Latina, também houve um processo de involução e de restauração. Alguns
setores consideraram que o Concílio, em alguns aspectos, havia ido longe demais
e que era necessário retomar uma linha mais tradicional em vários níveis.
O 50º aniversário do início do Vaticano
II é um momento muito oportuno para reler o Concílio. Os grandes
documentos, especialmente a Lumen Gentium e a Gaudium et
Spes, têm intuições permanentes que são muito pertinentes para a
situação atual. O espírito democrático e o desejo de participação exigem uma
Igreja comunitária, participativa e solidária. A abertura ao mundo hoje em dia
adquire novos aspectos e enfrenta grandes desafios. Há problemas novos que não
foram considerados no Concílio, mas temos as ferramentas que tornam possível
enfrentá-los. Tanto a teologia da libertação, por si mesma, como o próximo
Congresso de 2012 podem contribuir muito para abordar de uma maneira nova esses
novos desafios.
IHU On-Line – Em 2012, também comemoramos
os 40 anos da publicação do livro de Gustavo Gutiérrez. A partir dessa obra
inaugural, quais foram e são as principais contribuições da teologia da
libertação no contexto da América Latina? Qual é o significado da
"libertação" hoje?
Sergio Torres – O surgimento da
teologia da libertação significou um momento importante na história da teologia
em geral. Antes disso, considerava-se que havia apenas uma única teologia universal,
de acordo com o que diz São Paulo: "Um só Senhor, uma só
fé, um só batismo". Sem negar de forma alguma esse princípio fundamental,
a teologia da libertação abriu a perspectiva contextual. Cremos em um só
Senhor, mas fazemos isso a partir dos nossos contextos e das nossas situações
sociais e culturais próprias e diferentes. O contexto permite aprofundar alguns
aspectos da única mensagem e torná-la mais credível para pessoas de diferentes
culturas. Nascida na América Latina, a teologia da libertação se estendeu para
a África e Ásia e, além disso, existem
experiências de teologia contextual na América do Norte e Europa.
A teologia libertadora contribuiu com outros
elementos para a reflexão teológica tradicional. A teologia refletia sobre o
mistério de Deus descobrindo-o nos "lugares teológicos" permanentes
como a Bíblia, a Tradição, a Liturgia,
o Magistério, o ensinamento dos teólogos etc. A teologia da
libertação agregou outro "lugar teológico": descobrir a presença de
Deus na "fé que atua pela caridade", especialmente entre os pobres
que, iluminados pela sua fé e pelo seguimento de Jesus, lutam pela sua
libertação.
O conceito de libertação ampliou-se e
enriqueceu-se. Em um primeiro momento, falou-se da libertação dos pobres
entendidos como os operários das indústrias e das fábricas das grandes cidades
do continente. Posteriormente, o conceito de pobre também foi se aprofundando.
Os pobres são os excluídos, os marginalizados, os que não têm voz, os que são
discriminados ou, como se diz hoje, "o outro". Atualmente, o conceito
de liberação expressa a salvação e a libertação que Jesus nos traz com muitos
termos que se referem à salvação de setores postergados e oprimidos, na atual
situação cultural e social.
Hoje em dia, não existe uma única teologia da libertação.
Há um pluralismo teológico, aberto, mas fiel a algumas intuições e princípios
básicos da primeira teologia da libertação. Essa teologia ainda tem muito a dar
de si mesma. Por exemplo, deve continuar articulando a contribuição própria e
complementar dos teólogos acadêmicos e dos teólogos de base. Além disso, também
se pede que os profissionais não falem somente para os pobres, mas a partir e
com os pobres.
IHU On-Line – Em um momento histórico de
maior democracia e desenvolvimento na América Latina, como o senhor vê a Igreja
regional?
Sergio Torres – A história
econômica, social e política tem sido marcada por grandes etapas que incluem os
processos de desenvolvimentismo dos anos 1950 e 1960, as ditaduras dos anos
1970 e 1980 e a recuperação da democracia no novo contexto da globalização
neoliberal. A Igreja hierárquica e a Igreja de base têm estado presentes de
formas diferentes nesses processos históricos. Atualmente, dá a impressão de
que não temos respostas muito definidas frente aos novos desafios. O que
aprendemos com as etapas anteriores não é suficiente para atuar no momento
presente. Há desafios novos como os que provêm do crescimento da população
mundial, das mudanças climáticas globais e do esgotamento dos recursos naturais
que ameaçam a própria sobrevivência da vida no planeta.
A teologia da libertação e a ação social da
Igreja se baseiam no protagonismo do povo e em uma teoria social crítica que
permita interpretar as causas da pobreza e propor estratégias viáveis de
desenvolvimento e de libertação. Ambas as coisas hoje em dia são insuficientes.
A mobilização popular é fraca e inorgânica, e não há uma teoria social comum
que permita enfrentar o neoliberalismo.
No entanto, há um elemento positivo. A teologia
da libertação está mais bem preparada do que outras instituições e ideologias
para interpretar o que está acontecendo atualmente com o mal-estar global e os
protestos dos "indignados". Esse mal-estar se deve à crise de um
paradigma de civilização e exige um novo modelo de sociedade com participação
cidadã, regulação e controle da economia financeira. Além disso, seria preciso
chegar a ter novos modelos e critérios de governança mundial. Para isso seria
necessária uma reforma da organização interna das Nações Unidas.
O Fórum Social Mundial, em suas
diversas versões, proporcionou novas ferramentas para animar os movimentos
sociais e criar um novo estilo de fazer política. Mas essas inspirações não
foram suficientes para criar uma força transformadora e renovadora. Por
enquanto, nós, cristãos, estamos chamados a viver o Evangelho em pequenas
comunidades e a participar dos movimentos sociais atuais e de outras
iniciativas que permitam progressivamente ir abordando os problemas mais
globais, tais como as redes sociais da internet.
[...]
_______________________________
¹ O Instituto Humanitas Unisinos – IHU é um órgão
transdisciplinar da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São
Leopoldo, RS, que visa a apontar novas questões e buscar respostas para os
grandes desafios de nossa época, a partir da visão do humanismo social cristão,
participando, ativa e ousadamente, do debate cultural em que se configura a
sociedade do futuro.
Fundado em
setembro de 2001, por ocasião do Simpósio Internacional O Ensino Social da
Igreja e a Globalização, o IHU desenvolve sua reflexão e ação a partir de cinco
grandes eixos orientadores:• Ética
• Trabalho
• Sociedade Sustentável
• Mulheres: sujeito sociocultural
• Teologia Pública.
(Por Moisés Sbardelotto)
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