Domingo, 17 de fevereiro de 2013
Embora o papa
não consagre chefes de Estado, não comande exércitos, nem dirija alguma
corporação transnacional, ele continua a exercer poderes que não são
insignificantes.
14/02/2013
Pedro A.
Ribeiro de Oliveira
A
inesperada renúncia do Papa Bento XVI abre o processo que elegerá seu sucessor
no pontificado. Durante séculos constou da cerimônia de inauguração do
pontificado a tiara: ornamento de cabeça com três coroas superpostas. De origem
medieval, a tiara simboliza a conjunção de três poderes. Ao ser coroado, o Papa
recebia a tiara como símbolo de tornar-se então “Pai de Príncipes e Reis,
Pastor de toda a Terra e Vigário de Jesus Cristo”. O último papa a colocá-la na
cabeça foi Paulo VI, que em 1963 a depositou aos pés do altar para não mais ser
usada. Desapareceu assim o antigo símbolo do poder temporal dos papas.
Acabou-se o símbolo, com certeza,
mas não os poderes temporais. Embora o papa não consagre chefes de Estado, não
comande exércitos nem dirija alguma corporação transnacional, ele continua a
exercer poderes que não são insignificantes. Sem alarde e sempre alegando
servir a Igreja, os últimos papas conservaram os principais poderes que a
tradição medieval lhe atribuiu.
Em primeiro lugar, o papa dispõe
de uma importante instituição financeira: o Instituto para as Obras de
Religião, que funciona como banco a serviço da Santa Sé. Por gozar
do privilégio de extraterritorialidade, essa instituição pode fazer aplicações
de capital em diferentes campos da economia sem submeter-se ao controle externo
de suas atividades. Isso dá ao papa considerável poder econômico, pois ainda
que viessem a faltar as contribuições voluntárias dos fiéis, os rendimentos
dessas aplicações financeiras permitiriam manter a Santa Sé em funcionamento
por muito tempo.
Outro poder oriundo da tradição
medieval é a condição de chefe de Estado. O Vaticano é um território minúsculo,
comparado aos antigos Estados Pontifícios, mas dá ao papa o comando sobre o
corpo diplomático da Santa Sé, que é tido como um dos mais competentes e
eficientes do mundo. Formados pela Pontifícia Academia Eclesiástica, os núncios
apostólicos e seus auxiliares representam a Santa Sé em quase todos os Países
do mundo e junto aos principais organismos internacionais. Sua função não é
apenas diplomática mas também eclesiástica, pois as nunciaturas são o veículo
normal das informações confidenciais entre a Secretaria de Estado e os bispos
de um país, e por elas passam as denúncias de irregularidades nas igrejas
locais. Independentemente da quantidade de católicos residentes no país, a
representação diplomática da Santa Sé tem status de embaixada e em muitos
países o núncio exerce a função de decano do corpo diplomático.
Outro poder de grande importância
é a nomeação de bispos. Também herança medieval, quando havia grande
interferência de reis e príncipes na escolha de bispos para dioceses situadas
em áreas sob sua jurisdição. Para proteger aquelas dioceses contra nomeações
que atendessem antes aos interesses dos governantes do que às necessidades
pastorais da igreja local, o papa reservou-se o direito de eleição dos bispos.
Hoje em dia a laicidade do Estado impede a interferência do poder político na
escolha de bispos, e a situação inverteu-se: em vez de salvaguardar o direito
de a igreja local escolher seu bispo, a escolha do candidato pelo papa volta-se
contra ele. As nomeações episcopais são regidas pela lógica da cúria romana e
não pelas necessidades da igreja local. Isso não significa, é claro, que a
cúria romana desconheça as igrejas locais, mas seu conhecimento depende da
eficiência dos canais de informação disponíveis. Além disso, como todo ocupante
de cargo de direção presta contas primeiramente a quem o elegeu, os bispos se
sentem obrigados a seguir a orientação vinda de Roma mesmo quando ela não
condiz com a realidade de sua igreja particular. E isso, sem dúvida, só faz
aumentar a centralização do poder romano.
Apontados esses três poderes
papais, como três coroas de uma tiara, cabe refletir sobre o significado da
renúncia dos últimos quatro papas ao uso da tiara. Renunciaram apenas a um
ornamento bizarro ou a certos poderes que hoje mais impedem do que favorecem a missão
evangelizadora da Igreja?
Os três poderes acima enunciados
– poder econômico, poder de Estado e poder eclesiástico – favorecem uma forma
de organização centralizada e piramidal, na qual a cúpula tem o controle de
todas as instâncias intermediárias até as bases. Esse modelo organizativo que
moldou também a burocracia estatal, o exército, e as empresas privadas desde o
século XIX vem sendo substituído por outro modelo, mais flexível e ágil: a
organização em rede, que tornou caduca a organização piramidal, hoje
incapaz de assegurar uma governança eficiente.
Não é, porém, por ter saído de
moda que o modelo centralizado e piramidal adotado pela Igreja católica romana
deve ser criticado, pois há coisas fora de moda que continuam boas – como o
casamento monogâmico, por exemplo. O poder centralizado e piramidal merece ser
criticado é porque dificulta o exercício da autoridade: a capacidade de
mobilizar pessoas apenas pela força moral de quem as lidera. Aí, sim, reside o
fulcro da questão.
Os clássicos da sociologia – E.
Durkheim, K. Marx e M. Weber – perceberam que a força histórica e social da
religião reside em sua capacidade de moldar – pela convicção, não pela coerção
– o comportamento humano e assim formar o “clima moral” de uma sociedade. É na
ação molecular, de base (as múltiplas atividades pastorais de comunidades,
movimentos e congregações religiosas) que reside a força social da Igreja. Sem
essa capilaridade pastoral, os pronunciamentos do papa – e dos bispos, pode-se
acrescentar – seriam mera retórica. Se o papa e os bispos querem ter força
moral, é hora de renunciar aos poderes temporais. Ai reside um grande desafio
ao sucessor de Bento XVI.
Uma Igreja que anuncia e constroi
o Reinado de Deus no mundo atual – afinal esta é sua perene missão, reafirmada
no Concílio Ecumênico de 1962-65 – deve renunciar ao poder econômico, à
diplomacia e à organização piramidal, para tornar-se uma Igreja capaz de dialogar
com o mundo como fazia Jesus: com autoridade moral e testemunho de amor –
preferencialmente aos pobres e às pessoas socialmente desprotegidas. Que o
próximo papa deixe a tiara no museu do Vaticano e com ela os poderes temporais
herdados dos tempos medievais. Será bom para o Papa, para a Igreja católica e
para o mundo todo.
Juiz
de Fora – MG, 11/ fevereiro. 2013
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¹ Pedro A. Ribeiro de Oliveira é
sociólogo, professor no Mestrado em Ciências da Religião da PUC-Minas e
Consultor de ISER-Assessoria.
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