Abaixo,
um artigo muito oportuno e esclarecedor, de Ana Luiza Basíli, que foi publicado em abril deste ano (2015) no
Portal Forum.
A
leitura deste texto pode ser uma grande oportunidade para entender melhor a pedagogia e o projeto de educação proposto por Paulo
Freire, e também compreender o porquê
esse projeto (método) no Brasil tem muitos simpatizantes, mas também não poucos
opositores.
Não
deixe de ler!
WCejnóg
Por que o Brasil precisa de
Paulo Freire?
Nos protestos contra a presidenta
Dilma Rousseff, era possível ver faixas e cartazes deslegitimando o
trabalho do educador. “Ao invés de ‘basta de Paulo Freire’, precisamos de mais
Paulo Freire para um país mais decente”, diz especialista
Por Ana Luiza Basílio*,
do Centro de Referências em Educação Integral
“Chega de doutrinação
marxista. Basta de Paulo Freire”. “É preciso colocar Paulo Freire em seu devido
lugar, que é o lixo da história”. Esses foram alguns ecos decorrentes das
manifestações contra o governo no mês de março, que reuniram pessoas nas ruas
de várias capitais brasileiras.
Por que Paulo Freire
incomoda? A quem? O que esses discursos revelam? Levamos os
questionamentos a alguns especialistas, com o intuito de resgatar parte da
história e da contribuição do educador pernambucano, declarado patrono da
educação brasileira em 2012, pela lei 12.612, sancionada pela presidente Dilma Rousseff.
O lugar de Paulo Freire
Para o professor titular
da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e diretor do
Instituto Paulo Freire, Moacir Gadotti,
é preciso rigor para falar de Paulo Freire. Ele relembra as incontáveis
publicações e referências ao educador, algumas disponíveis na internet, e
completa: “ele tem um lugar no mundo garantido pelo reconhecimento do seu
trabalho, com contribuições na educação, nas artes, nas ciências e até na
engenharia”.
Por isso, avaliá-lo
somente como educador não basta, opina o professor emérito da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG), Miguel
Arroyo. “A radicalidade dele tem que ser entendida dentro de nossa
história”, garante. Daí a necessidade de se reivindicar o lugar de Paulo
Freire. “Sobretudo por parte dos educadores populares que assumem, para além de
suas ideias, as concepções de mundo que estão por trás delas”, reflete Gadotti.
Uma pedagogia concreta
O rechaço a Paulo Freire
não é novidade e tampouco recente. Tem início já nos fins dos anos 50 e começo
da década de 60, momento em que o educador idealiza a educação popular e
realiza as primeiras iniciativas de conscientização política do povo, em nome
da emancipação social, cultural e política das classes sociais excluídas e
oprimidas. Sua metodologia dialógica
foi considerada perigosamente subversiva
pelo regime militar, o que rendeu a Freire o exílio. O educador, entretanto,
não deixou de produzir e nesse período escreveu algumas de suas principais obras,
dentre elas, a Pedagogia do Oprimido.
Arroyo entende que as
manifestações atuais contra o educador só mostram que os setores conservadores
continuam tão reacionários quanto na época da ditadura. “E isso surge em um
momento em que o partido político que está no poder foi eleito,
majoritariamente, pelo cidadão pobre, negro, nordestino. A rejeição a Freire, a
meu ver, revela uma questão premente de nossa história de reconhecer ou não o
povo como sujeito de direitos”, garante, ponto sobre o qual o educador se apoia
para chamar a pedagogia freiriana de “pedagogia dos oprimidos concretos”.
“O que caracteriza a
nossa história é não reconhecer os indígenas, os negros, os pobres, os
camponeses, os quilombolas, os ribeirinhos e os favelados como sujeitos
humanos”, condena o educador. Em sua análise, essa crença serviu, ao longo da
história, como justificativa ideológica para que as classes dominantes
escravizassem e espoliassem esses setores sociais. “Tudo isso
a partir de uma visão de que somos o símbolo da cultura, civilidade e os
outros a expressão da sub-humanidade, subcultura, imoralidade. É isso que nos
acompanha ao longo da vida e Paulo Freire se contrapôs a isso, inverteu esse olhar”,
analisa Arroyo.
O que ele considera
“como um dos pontos mais radicais e politicamente avançados de Freire” é a valorização da cultura, das memórias, dos
valores, saberes, racionalidade e matrizes culturais e intelectuais do povo,
contrapondo-se à lógica de que era necessária a inferiorização de uns para
garantir a dominação de outros. Na educação, sobretudo, essa radicalidade
implica em enfrentamentos. “Existe a ideia de que nós, cultos, racionais,
conscientes, vamos fazer o favor de, através da educação, conscientizar o povo;
para Freire não se tratava de conscientizá-los, moralizá-los, mas de
reconhecê-los como sujeitos de uma outra pedagogia, capaz de dialogar com essas
culturas, identidades e histórias”, esclarece Arroyo.
Paulo Freire em outros contextos
Essa centralidade nos
sujeitos, própria da concepção freiriana, também apoiou a organização de
trabalhadores. Na cidade de São Paulo, quando à frente da Secretaria Municipal
de Educação, na gestão de Luiza Erundina, Paulo Freire aprovou o Estatuto do Magistério importante não só
aos docentes como a todos os profissionais da educação, como avalia a atual
chefe de gabinete da deputada estadual Luiza Erundina, Muna Zeyn, que trabalhou com o educador na gestão paulistana. “Para
ele, todos estavam em processo de educação, do bedel à faxineira, passando pelo
professor”.
Influência também na
construção de organizações e movimentos de massa, caso do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Para a militante do setor de
Educação do Movimento Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), de
Pernambuco, Rubneuza Leandro de
Souza, a combinação entre necessidade e conscientização foi vital para a
organização do movimento.
Sobretudo em relação à
educação. Começamos a nos perguntar qual educação queríamos. Sabíamos que não
era aquela que desconhecia o contexto das crianças e as estigmatizava como
filhas de ladrões, criminalizando a nossa luta”, critica.
Nas escolas do MST, há
uma necessidade de que o conhecimento escolar se articule com a realidade e que
a educação se estabeleça como elemento de transformação, “libertadora, contra
hegemônica e emancipadora”. Rubneuza explica que, nos acampamentos, onde muitas
vezes não há escolas próximas, o movimento busca auto organizá-las e que,
quando o assentamento é conquistado, há um processo de formalização da
instituição. “Isso porque a educação
formal entra em contradição com nosso processo de luta, quase sempre porque a
escola não entende a realidade que a criança vive”.
Pela integralidade dos indivíduos
Há quem ataque a
pedagogia freiriana, tratando-a como doutrinária. Gadotti explica que a grande
questão é entender que Freire reconhecia a educação como ato político, de
cultura. “A primeira aula de alfabetização em Angicos (Rio Grande do Norte) foi
sobre cultura”, relembra o educador. A educação, a formação e até a
alfabetização inicial precisa passar pela cultura, pelo reconhecimento do sujeito que conhece, que
faz sua leitura do mundo. E é por ser cultural que a educação é política, não
no sentido partidário, mas de decidir a vida na pólis (cidade),
discutir a vida, o mundo que queremos”.
Ainda de acordo com
Gadotti, a educação deve ser vista como um dos elementos de uma cidade educadora , que prevê
a educação integral, e
não deve se referir só ao conhecimento e ao saber simbólico, mas também ao
sensível, ao técnico. “A integralidade
do saber é o tecido técnico, simbólico, político, cultural e implica também a
politicidade do ato educativo. Ninguém nega que a educação supõe valores,
princípios, ética. É isso que falta discutirmos na educação brasileira hoje”,
constata Gadotti.
Por mais Paulo Freire
Em sua análise, a
perseguição a Paulo Freire na época da ditadura não apenas o expulsou do
Brasil, mas também do sistema de ensino do país, impondo um autoritarismo e
associando a educação ao chamado tecnicismo pedagógico, que a afasta de
qualquer caráter social. “Não conseguimos sequer agregar qualidade a esse
tecnicismo, mas o fato é que ele é uma herança da ditadura e continua forte”,
evidencia.
Para Gadotti, o ethos freiriano não está presente nas escolas
hoje. “Estaria se tivéssemos uma
educação participativa, democrática, em
que a escola formasse para a cidadania, como está na Constituição Federal e na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB). Não é só formar para o trabalho, mas para a
cidadania, para que o povo participe da construção de uma nação. Ao invés de
‘basta de Paulo Freire’, precisamos de mais Paulo Freire para um país mais
decente”, reforça.
Arroyo também
compartilha da opinião e demonstra preocupação, sobretudo com a proposta de
educação integral. “Não podemos
entendê-la como mais tempo de escola, nesse mesmo contexto que estamos
inseridos. Seria um desrespeito para o povo e iria contra tudo o que Paulo
Freire defendia”, alerta. É fundamental, em sua opinião, que as propostas
pedagógicas incorporem os indivíduos em suas totalidades. “Precisamos entender as crianças que chegam às escolas em diversos
contextos, o da família negra, o da favela, como filhos de mulheres trabalhadoras.
Que saberes e lutas eles trazem consigo para a educação?”, indaga.
“Essas são experiências
reais, totais, que exigem uma proposta plural, integrada”, problematiza. Para
ele, é urgente pensar que a educação, o currículo diversificado e os saberes
prévios podem dar conta de devolver a humanidade roubada das crianças e
adolescentes oprimidos. “A função da
escola só é integral se ela passa a ser um espaço digno, justo, capaz de
recuperar o que lhes roubam”, conclui.
Fonte:
Portal Forum
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* Ana Luiza Basilio é jornalista, pós graduada em
Gestão Comunicacional pela USP, atualmente trabalha como editora da Associação
Cidade Escola Aprendiz. In:
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