“Um mártir que dá testemunho do Deus vivo em meio à
morte que os opressores semeiam. Mártir do nosso tempo, cristão incômodo e
forte, de vida clara, humilde e serena. A sua morte, infelizmente, não é um
fato isolado e nos permitirá compreender muitas outras testemunhas espalhadas
neste continente de dor e de opressão, mas também de libertação e de esperança,
que é a América Latina.” (do texto abaixo, de Gustavo Gutiérrez)
Hoje trago para o blog
Indagações-Zapytania mais um artigo
muito bom sobre a vida e a pessoa do
mártir Dom Óscar Romero, beatificado pela Igreja Católica em maio deste ano (a
cerimônia de beatificação aconteceu no dia 23 de maio de 2015, em El Salvador).
O artigo abaixo, de Gustavo Gutiérrez, pode
servir de uma excelente leitura para quem estiver interessado em conhecer mais
sobre o Dom Romero, ou mesmo apenas para
relembrar os seus mais importantes traços.
Foi publicado alguns dias antes da Beatificação, na Itália, e também no site do
Instituto Humanitas Unisinos (IHU).
Vale a pena ler!
WCejnóg
IHU –
Notícias
Segunda, 18 de maio de
2015
Romero,
o bispo que morreu pelos pobres. Artigo de Gustavo Gutiérrez
(...) A um mês do assassinato, ocorrido em março de
1980, o maior expoente da teologia da libertação, Gustavo Gutiérrez, com lucidez, indicava
a exemplaridade da vida e da morte do bispo de El Salvador. Foram
necessários 35 anos para que a Igreja oficial chegasse a conclusões
semelhantes.
Era assim que o
vaticanista italiano Giancarlo Zizola
apresentava o artigo abaixo na editoria "Religião e mundo
moderno", por ele editada no jornal Il Giorno, publicado em
26-04-1980: "Gustavo Gutiérrez, da Faculdade de Teologia da Universidade
Católica de Lima, um dos maiores expoentes da 'teologia da libertação'
da América Latina, aprofunda neste artigo o significado da vida e
do martírio de Dom Romero, do qual era amigo, oferecendo amplas
informações inéditas".
A tradução é de Moisés
Sbardelotto.
Eis o texto.
O assassinato de Dom
Óscar Arnulfo Romero, arcebispo de San Salvador, é, sem dúvida,
uma data na vida da Igreja latino-americana.
Por isso, convém aprofundar
o sentido da sua vida e da sua morte, esclarecendo ao mesmo tempo algumas
imprecisões produzidas pela pressa da informação.
Dom Romero foi
arcebispo de San Salvador por três anos. Um mês depois de ter
assumido esse cargo, em março de 1977, era assassinado o padre Rutilio Grande, sacerdote jesuíta e grande amigo de Dom
Romero. Atiraram nas costas dele e de dois agricultores, enquanto ia celebrar a
missa.
Durante a celebração do
funeral do padre Rutilio, Dom Romero mostrou o
significado da sua morte, expressão de uma vida dedicada aos irmãos, no amor
ensinado por Cristo, afirmando: "Esperamos
a voz de uma justiça imparcial, porque, na motivação do amor, a justiça não
pode ficar ausente, não pode haver verdadeira paz e verdadeiro amor com base na
injustiça, na violência, na intriga". Dom Romero repetiria muitas
vezes essa mesma ideia: a paz, a
verdadeira paz só pode ser construída sobre a justiça social.
Quatro outros sacerdotes
seriam assassinados em El Salvador depois da morte do
padre Rutilio. Inúmeros foram os assassinatos cometidos pelas
forças repressivas de El Salvador, entre agricultores, operários,
pessoas dos vilarejos; o Socorro Jurídico do arcebispado
publicava boletins periodicamente, dando números e denunciando a contínua violação
dos direitos humanos.
Em Roma,
onde recebeu palavras de apoio do Papa João Paulo II – que lhe
disse: "Conheço a grave situação do seu país e sei que o seu apostolado é
muito difícil" –, Dom Romero afirmava com grande lucidez
no dia 30 de janeiro: "O maior
perigo diante de tanta violência é que fiquemos insensíveis. Eu tento pensar
diante de Deus que um só morto representa uma grave ofensa e que, todas as
vezes que um homem ou uma mulher morre, é como matar novamente Jesus Cristo".
Dom Romero tinha
uma consciência clara de que devia reconhecer os estigmas sofredores de Cristo nos
rostos dos pobres do seu povo. A sua opção por eles é o ângulo concreto e
histórico que nos permite compreender o seu compromisso e a sua mensagem, o seu
apelo à paz baseada na justiça, a sua leitura do Evangelho.
Dom Romero pregava
todos os domingos, e as suas amplas homilias (de uma a duas horas de duração)
eram ouvidas com atenção em todo o país e também muito além. Cada homilia tinha
três partes: um comentário sobre os textos da missa do dia, uma reflexão cristã
que colocava esses textos no rastro de um tema determinado e, por fim,
aplicações pastorais, leitura de cartas, análise da situação vivida pelo povo,
denúncia das violações dos direitos dos mais pobres.
No dia 17 de fevereiro
daquele ano, ele enviou uma carta ao presidente Carter, denunciando
a situação existente em El Salvador e o apoio dos Estados
Unidos, exigindo que o governo estadunidense, chamado a fazer essas
intervenções, se abstivesse de intervir.
Dom Romero muitas
vezes recebeu ameaças de morte. O assassinato dos sacerdotes salvadorenhos já
era um aviso. No dia 24 de fevereiro, um mês antes da sua própria morte e
depois de ter defendido com parcialidade evangélica os direitos dos pobres, ele
dizia: "Espero que esse apelo da
Igreja não endureça ainda mais o coração dos oligarcas, mas que, ao contrário,
mova-os à conversão. Compartilhamos o que eles são e o que eles têm. Não nos
calem, mediante a violência, a nós que tornamos presente essa exigência, não continuem
a matar aqueles que estão tentando conseguir uma distribuição mais justa do
poder e da riqueza de nosso país".
A essa clara denúncia,
que não escondia aqueles aos quais se dirigia, ele acrescentava com serenidade
e força: "Falo em primeira pessoa,
porque esta semana recebi um aviso de que estou na lista daqueles que serão
eliminados na próxima semana. Mas estou tranquilamente convicto de que nunca se
poderá matar a voz da justiça".
A voz da justiça, não,
porque ela continua ressoando em El Salvador. Mas ele, pessoalmente, sim, depois de quatro
semanas de ter pronunciado essas palavras. Pode-se dizer, por isso, que Dom
Romero arriscava a sua vida todos os domingos; e estava plenamente
consciente disso.
Quando lhe disseram que
ele tinha que se proteger, ele respondia que não queria ter a proteção que o
seu povo não tinha. Ainda no sermão do dia 1º de novembro, ele tinha afirmado
com toda a clareza e plena humildade: "Peço
as orações de vocês para ser fiel à promessa de não abandonar o meu povo, mas
de correr com ele todos os riscos que o meu ministério exige".
Com efeito, para Dom
Romero, isso era cumprir o seu serviço como bispo. O exercício do seu ministério assumido
com coragem e santidade provocou a bala assassina – uma única – no momento em
que começava o ofertório da sua última e incompleta eucaristia, na
segunda-feira, 24 de março.
Ele morreu para dar
testemunho do Deus vivo na solidariedade com a vida e com os esforços de
organização e de libertação dos pobres e dos oprimidos. Dom Romero não
ignorava que havia alguns que não compreendiam as exigências do Deus da Bíblia.
No dia 9 de março, ele
dizia: "Esta revelação do Deus vivo,
caros irmãos, tem muita atualidade hoje, enquanto estamos tentando apresentar
uma religião que muitos criticam como se se afastasse da sua
espiritualidade".
O bispo mártir, homem de
oração, não entendia isso dessa forma. Ao contrário, ele considerava que a fé
no Deus de Jesus implica o compromisso com o pobre e com tudo o que exigem os
seus direitos mais elementares. É por
isso que, na sua rejeição humana e cristã da violência, nem tudo era posto no
mesmo plano para ele.
Em inúmeras ocasiões,
ele afirmou que a principal razão para aquilo que acontecia em El
Salvador estava na secular situação de miséria e de desespero das
grandes maiorias, resultado de um sistema opressivo feito em benefício de
poucos.
Trata-se da violência e
da injustiça institucionalizadas das quais falam Medellín e Puebla.
A partir daí, não é possível aceitar tudo, e Dom Romero não o
fez, mas importa levar isso em consideração para compreender a exigência e a
encarnação do amor e da paz que ele pregava.
A essa situação de
violência, soma-se uma repressão cruel. Plenamente consciente de onde vinha a
violência, no dia 23 de março, Dom Romero lançou um grito angustiado e
exigente: "Em nome de Deus e desse
povo sofredor, cujos lamentos sobem ao céu todos os dias, peço-lhes,
suplico-lhes, ordeno-lhes: cessem a repressão".
No dia seguinte, à
noite, o seu sangue selou a aliança que ele tinha feito com o seu Deus, com o
seu povo e com a sua Igreja.
No domingo, 30 de março,
ocorreu o funeral do bispo mártir. O povo pobre de El Salvador,
vencendo dificuldades e fadigas, veio de todo o país para assistir ao enterro
do "monsenhor". Muitas pessoas vieram de fora, entre elas mais de 20
bispos de diferentes lugares do mundo.
O cardeal Corripio,
do México, esteve presente em representação do papa; o enviado
do Celam (o Conselho Episcopal Latino-Americano)
teve um contratempo e não pôde estar presente na celebração. A tensão do
momento fez com que só um bispo de El Salvador estivesse
presente. Fato sem dúvida doloroso, mas que mostra a difícil e conflituosa
situação que se vivia lá.
A poucos minutos do
início da homilia do cardeal Corripio, explodiu uma bomba, e tiros
foram disparados. Foi um pânico para as 150.000 a 200.000 pessoas presentes,
famílias inteiras, inúmeras crianças. A soma dos mortos dessa incrível
provocação foi de 30 a 40 pessoas, muitas delas por asfixia.
Na noite daquele
domingo, os bispos presentes e outras pessoas se reuniram para pôr em comum o
que tinham visto e tudo o que se sabia sobre o episódio durante o funeral. O
resultado dessa análise detalhada foi escrito e assinado pelos participantes.
Assim, recusou-se a versão dos fatos dada pelo governo salvadorenho e
indicou-se o Palácio Nacional como o lugar de onde havia sido
lançada a bomba e tinha se disparado sobre a multidão.
Dom Romero,
então, só pôde ser enterrado nas circunstâncias em que o povo salvadorenho vive
cotidianamente: no meio das balas, do medo que se busca incutir, mas também da
reafirmação da vontade de libertação e de crescimento da esperança.
Dom Romero é
um mártir da opção feita pela Igreja em Medellín e Puebla. A partir da sua morte, o significado dessa opção apareceria mais claramente. Um
mártir que dá testemunho do Deus vivo em meio à morte que os opressores
semeiam. Mártir do nosso tempo, cristão incômodo e forte, de vida clara,
humilde e serena. A sua morte, infelizmente, não é um fato isolado e nos
permitirá compreender muitas outras testemunhas espalhadas neste continente de
dor e de opressão, mas também de libertação e de esperança, que é a América
Latina.
Sobre o sangue dos
mártires, constrói-se a Igreja como comunidade que anuncia na Ressurreição a
vitória final. da vida sobre a morte. Sobre o sangue dos mártires, está sendo
construída no nosso subcontinente uma Igreja em meio a um povo que luta pela
sua libertação.
Dom Romero descrevia
assim o seu trabalho, em uma homilia: "O
meu trabalho consistiu em manter a esperança do meu povo. Se há um pouco de
esperança, o meu dever é alimentá-la".
A sua vida e o seu
martírio alimentam e aumentam as esperanças do povo pobre, explorado e cristão
da América Latina, dão vida nova e impõem novas exigências para a Igreja
ali presente.
Fonte: IHU - Notícias
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