Abaixo, um artigo que deveria ser lido, discutido e
divulgado em todos os círculos comunitários, sociais, educacionais e
universitários da sociedade brasileira. Penso que textos como este podem ajudar
a despertar em nós a consciência crítica e a itensificar o processo de
conscientização de todos os cidadãos e cidadãs para reduzir ao máximo (ou até
mesmo acabar com ele, por que não?) “o analfabetismo econômico atroz que nos
acomete” – segundo as palavras do autor deste artigo.
"O governo é apenas quem assina o cheque. Quando falamos “o Brasil”, muita gente ainda acha que estamos falando do governo. Perdemos, talvez na ditadura, e ainda não recuperamos a noção de que o Brasil são os brasileiros.
Quem confunde isso com nacionalismo barato e governismo acaba por reproduzir, às avessas, a velha maneira de pensar ensinada pela própria ditadura. Puro analfabetismo cívico.
Quem paga a conta cara dos juros altos são todos os que pagam impostos, principalmente os mais pobres, que, proporcionalmente, pagam mais impostos." (...) - do texto abaixo.
O artigo foi publicado recentemente no site do Instituto Humanitas Unisinos (IHU).
Não deixe de ler!
WCejnog
IHU – Notícias
Quarta, 02 de abril de
2014
Somos educados
para o analfabetismo econômico
"Se
o Brasil sofreu o rebaixamento de um único pontinho, 'o que eu tenho a ver com
isso?', pode e deve perguntar o cidadão. Como diria o velho
Brecht, tem a ver com o custo de vida, o preço do
feijão, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio. Não deveria ter, mas
tem", escreve Antonio Lassance, pesquisador do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e professor de Ciência
Política, em artigo publicado por Envolverde, 01-04-2014.
Eis artigo.
A agência Standard & Poors, uma das que fazem classificação de risco de países e empresas, alterou a nota do Brasil para pior: de BBB para BBB-.
E
se alguém acha que esse é um debate econômico, está redondamente enganado. A economia
continua sendo um assunto importante demais para ficar restrito aos
economistas.
A
elevação ou o rebaixamento da nota de um país são entendidas, mundo afora, como
um sinal do quanto um país é rentável e confiável.
Confiável
segundo agências de classificação especializadas em dizer aos grandes financistas
internacionais onde investir seu dinheiro para obter maiores
lucros, com a garantia de que não tomarão um calote.
A Standard
& Poors foi criada no século XIX, nos Estados Unidos, por Henry
Varnum Poor, em plena época dos chamados
barões ladrões.
Os
grandes investidores que Henry Poor avaliava e recomendava
ganhavam dinheiro com ferrovias, siderúrgicas
e empresas de petróleo.
Uma
parte significativa dos lucros desses magnatas vinha da apropriação de terras e
outros ativos públicos e da arte de usar e roubar o dinheiro de pequenos
investidores desavisados, que depositavam suas economias no nascente mercado de
ações.
Esses
barões ladrões do século XIX não eram tão diferentes dos mais recentes, que
causaram a grande crise financeira de 2008 e 2009. Todos bem recomendados pela Standard
& Poors.
A
avaliação de risco do Brasil basicamente expressa o
quanto o país continua sendo um dos paraísos mundiais do rentismo, a mágica de
ganhar dinheiro com o trabalho dos outros. Quanto mais a política
econômica de um país é ditada pelos interesses dos rentistas,
melhor a nota.
Para
não ser rebaixado pelas agências, um país precisa rebaixar sua política
econômica. Tem que seguir uma receita orientada pelo objetivo de fazer crescer
o volume de dinheiro movimentado pelas finanças, e não o de fazer crescer o
país.
E ainda tem gente que acha que nosso grande problema é a Copa.
Se
o Brasil sofreu o rebaixamento de um único pontinho, “o
que eu tenho a ver com isso?”, pode e deve perguntar o cidadão. Como diria o
velho Brecht, tem a ver com o custo de vida, o preço do
feijão, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio. Não deveria ter, mas
tem.
Para
dizer a verdade, esse rebaixamento tem a ver até com a Copa do Mundo de Futebol,
pois, enquanto tem gente preocupada, com razão, com o custo dos estádios,
esqueceram-se do principal.
Para
se ter uma ideia: o País vai gastar cerca de 8 bilhões em estádios. É, de fato,
muito dinheiro. Mas o analfabetismo econômico ajuda todo
mundo a se esquecer de fazer a conta que importa.
O Brasil
gastou, em 2013, R$ 248 bilhões com o pagamento de juros, segundo o Banco
Central. Pois bem, dividindo esse valor pelos 365 dias
do ano, pagamos mais de R$ 679 milhões por dia.
Vamos
comparar com a copa? Dá quase para construir um
estádio do Mineirão por dia. Aliás, registre-se que o Mineirão
só tem R$11 milhões de dinheiro público envolvido em seu financiamento. O
restante será pago pela iniciativa privada. Dois dias de juros da dívida pagam
mais de um Maracanã.
E
ainda tem gente que acha que a copa é o absurdo dos absurdos do gasto em dinheiro
público. É a prova cabal do quanto perdemos a noção das
coisas.
Perdemos
a noção de grandeza e a de proporção. Com isso, perdemos também o senso crítico
em relação a esse buraco negro de nossas finanças públicas. Depois, perdemos o
foco das prioridades.
Finalmente,
erramos o o alvo das manifestações. Tem gente malhando o Judas
(a Copa, a Fifa) fingindo que está enfrentando o Império
Romano. Se não for piada, é teatro.
Quem
sabe, um dia, alguém se lembre de escrever a frase em um cartaz: “Cada 1% de aumento
na taxa de juros custa R$20 bilhões aos brasileiros”. É uma mensagem mais
consistente e valiosa do que “Não é só pelos 20 centavos”.
Vinte
bilhões são duas vezes e meia, por ano, o que iremos investir em estádios, que
serão pagos em 15 anos em empréstimos ao BNDES – ou seja, dinheiro que
voltará aos cofres públicos.
O rebaixamento do debate econômico nos fez perder a noção das
coisas
O
verdadeiro rebaixamento que o país sofre não é de hoje e não é só o da Standard
& Poors. O mais prejudicial de todos é o rebaixamento do
debate sobre os rumos da economia do país.
O Brasil
continua sendo um carro em que os mecânicos do mercado puxam o freio de mão e
culpam o motorista pela dificuldade de acelerar o crescimento, melhorar a infraestrutura
e a qualidade do serviço público.
A
primeira mudança para uma tomada de consciência é superar a visão de que os
juros são um problema só da macroeconomia e que sua conta é
paga pelo governo. Não é.
O
governo é apenas quem assina o cheque. Quando falamos “o Brasil”,
muita gente ainda acha que estamos falando do governo. Perdemos, talvez na ditadura,
e ainda não recuperamos a noção de que o Brasil são os brasileiros.
Quem
confunde isso com nacionalismo barato e governismo
acaba por reproduzir, às avessas, a velha maneira de pensar ensinada pela
própria ditadura. Puro analfabetismo cívico.
Quem
paga a conta cara dos juros altos são todos os que pagam
impostos, principalmente os mais pobres, que,
proporcionalmente, pagam mais impostos.
A
luta para inverter prioridades precisa convencer milhões de brasileiros de que
é preciso virar as finanças públicas de cabeça para baixo.
Hoje,
a principal função do Estado brasileiro é pagar juros, os
maiores do planeta. O Brasil é um dos três países que
mais comprometem recursos públicos com o pagamento de juros, em proporção do PIB,
conforme diz até o Fundo Monetário Internacional.
A educação,
a saúde, a segurança pública
e os investimentos em infraestrutura são pagos com o
troco do que sobra do pagamento de juros.
Somos educados para o analfabetismo econômico
O
problema que temos em mãos lembra o alerta feito por um professor de
Matemática, com cara de cientista maluco, chamado John
Allen Paulos, em seu livro “O
analfabetismo em Matemática e suas consequências” (publicado
originalmente em 1988).
O
divertido livro de Paulos relembra casos famosos
que denunciam a falta nem tanto de habilidade, mas de uso prático e corriqueiro
até das operações matemáticas mais simples.
A
principal denúncia de Paulos é ao quanto nos
desacostumamos da operação mais essencial de todas, não exclusiva da
Matémática: pensar sobre os problemas e raciocinar logicamente sobre eles.
Paulos nos avisa que
isso é um perigo. Corremos riscos diários com essa nossa preguiça de pensar
logicamente sobre os problemas e com a nossa incapacidade de extrair resultados
práticos e numéricos dessas operações.
O
que acho mais curioso nesse livro, e muito similar ao que acontece em nosso
debate econômico, é que esse tipo de analfabetismo é ensinado
diariamente.
É
como se fôssemos educados para o analfabetismo. Somos treinados a
esquecer a lógica dos argumentos e a concordar com coisas que não fazem o menor
sentido.
Paulos usa, dentre
tantos exemplos, o livro “Viagens de Gulliver”, de Jonathan
Swift (1667-1745). O matemático nos mostra como o autor de Gulliver,
ao descrever um gigante em uma terra de pequeninos (Lilliput), lascou o livro
de grandezas absurdas, que não fazem o menor sentido.
As
histórias de Gulliver são de 1726. Para não
parecer tão distante, Paulos escreveu, em 1995, “Como um
Matemático lê os Jornais”, publicado no Brasil
como “As Notícias e a Matemática” ou “Como um
Matemático lê jornal”.
Acertou
na mosca. A imprensa é useira e vezeira em nos deseducar a usar não só os
números, mas a lógica. É assim também com as notícias cujo título é
contraditado pelas próprias matérias, armadilha comum aos que leem jornal com o
espírito crítico repimpado e babando no sofá.
Terrorismo fiscal, um atentado ao raciocínio lógico
A
notícia sobre o rebaixamento da nota do Brasil foi
uma farra nesse sentido de propagar o analfabetismo econômico.
A
conclusão enfiada goela abaixo é a de que o País precisa aumentar seu rigor
fiscal e seu controle sobre a inflação.
Ou
seja, o Brasil precisaria urgentemente cortar gastos e continuar
elevando sua taxa de juros. Como assim, se o nosso principal gasto
extraordinário é com juros? Não faz sentido, faz? Depende pra quem.
A
ideia brilhante para atender às agências de risco é cortar o que o governo faz
para pagar mais juros. Faz todo o sentido – para o financismo, não para a
maioria dos brasileiros.
Mal
começou o ano, os problemas sazonais dos preços dos alimentos, que impactam
também os alugueis, são traduzidos na conclusão disparatada e tão absurda quanto
os números das “Viagens de Gulliver”.
A
lógica é a seguinte: se choveu muito, ou se choveu pouco, a inflação de
alimentos elevou-se. Solução: aumentem os juros. Elevando-se os juros, as
pessoas vão comer menos alimentos e os agricultores assim plantarão mais
alimentos. Com juros mais altos, choverá a quantidade certa, no lugar certo.
Entendeu? Nem eu.
O
preço do tomate disparou, então o remédio é aumentar os juros. A pessoa irá
desistir de levar tomates quando pensar que a taxa Selic está mais alta. Quando
a taxa Selic alcança dois dígitos, as pessoas trocam a
macarronada a bolonhesa por lasanha ao molho branco.
Os
alugueis subiram, então os juros precisam aumentar, pois, em Lilliput,
a terra de quem pensa pequeno, quando os juros sobem, ao contrário do que
ocorre em qualquer lugar do mundo, mais imóveis são construídos e os alugueis
baixam.
Engraçado,
pensávamos que seria o contrário; que, com juros mais baixos, mais pessoas
poderiam comprar seus próprios imóveis e se livrar dos alugueis. Aumentaria a
própria oferta de imóveis e os aluguéis cairiam. Difícil entender os lilliputianos.
Essa
falta de parâmetros e de noção do debate econômico
causa uma deficiência grave em nossas políticas públicas.
Figuras
exemplares que alertam sobre isso, como fazem Paulo Kliass, Ladislaw Dowbor e Amir
Khair aqui na Carta Maior,
há muito tempo, falam de coisas sobre as quais deveríamos não só prestar mais
atenção, mas usar em nosso dia a dia.
Os
movimentos sociais precisam se lembrar de explicar essa lógica dos argumentos
aos seus militantes.
Precisam
fazer as contas de quantos trabalhadores do setor público poderiam ser
contratados e pagos com esses valores estratosféricos e escatológicos pagos com
juros.
Precisam
mostrar para a opinião pública
quanto custa o reajuste de salários de suas categorias e compará-los com o que
se paga em juros aos banqueiros.
Quem
sabe, uma boa ideia seria acampar no gramado em frente ao Banco
Central toda vez que ocorre uma reunião do Copom. E por que
não fazer pelo menos um dia de luto quando se decreta aumento na taxa de juros.
Imagine
todo mundo com a fitinha preta no braço explicando quanto vai nos custar pagar
0,25 ou meio ponto percentual a mais na taxa Selic,
e quanto deixará de ser aplicado em prioridades para o país.
Pode
até não ajudar a pressionar a decisão do Comitê de Política Monetária (Copom)
do Banco Central, mas, pelo menos, seria um sinal de quantas pessoas terão se
livrado do analfabetismo econômico atroz que nos acomete.
Fonte: IHU - Notícias
Nenhum comentário:
Postar um comentário