Abaixo, uma
entrevista muito interessante e esclarecedora com o Frei Betto sobre o golpe
militar no Brasil em 1964 e sobre os anos da ditadura, analisando sobretudo os
conflitos existentes dentro da Igreja Católica no Brasil naquele período.
Para quem estiver
interessado em conhecer melhor os acontecimentos daquela época sob esse aspecto, encontrará aqui muitas preciosas informações.
A matéria foi publicada no UOL - Notícias, no mês de Março de 2014.
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50 Anos do Golpe de 1964
Cia
financiou Igreja em marchas pró-golpe militar, diz Frei Betto
Guilherme Balza*
Do UOL, em São Paulo
20/03/2014 > atualizada 21/03/2014.
Frei Betto é sempre lembrado quando o assunto
é a controversa relação entre a ditadura militar e a Igreja Católica, que passava por profundas transformações
enquanto o país esteve sob o jugo das Forças Armadas.
Em entrevista ao UOL, o dominicano
descreve os conflitos no interior da igreja durante a ditadura e explica como
se operou a mudança de lado da CNBB, que inicialmente celebrou o golpe com
agradecimentos a Nossa Senhora Aparecida, mas depois se constituiu como força
de resistência ao regime. O religioso revela ainda que a CIA (agência de inteligência
dos Estados Unidos) financiou as Marchas da Família com Deus pela Liberdade,
manifestações populares que antecederam o golpe militar.
QUEM É FREI BETTO
Frade dominicano e escritor, Carlos Alberto Libânio
Christo, o Frei Betto, 69, mineiro de Belo Horizonte, era um jovem estudante
adepto da Teologia da Libertação quando as tropas derrubaram o presidente João
Goulart, em 1964.
Foi preso pela primeira vez dois meses após o golpe,
permanecendo 15 dias detido. O segundo cárcere foi mais longo, entre 1969 e 73,
e mais cruel: o frade foi submetido a sessões torturas nos porões do DOI-Codi,
em São Paulo, comandado pelo Coronel Brilhante Ustra.
Nos dias posteriores ao golpe, o militante religioso
foi testemunha da derrota dos progressistas no embate com conservadores dentro
da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), fato que resultou no apoio
da Igreja Católica aos militares ao menos até 1968, quando o regime aprofundou
a repressão e a violação de direitos humanos.
Autor de três livros sobre os anos de chumbo (“Cartas da Prisão”,
“Diário de Fernando” e “Batismo de Sangue”), Frei Betto relata que o
Ato Institucional nº. 5 (AI-5) e o aumento da perseguição a religiosos, assim
como a ascensão de bispos progressistas, provocaram uma virada na igreja, que
passou a se opor aos militares até o final do regime, com a chancela do
Vaticano.
Eis
a Entrevista
UOL
– O que o senhor estava fazendo em 31 de março de 1964?
Frei
Betto - Na verdade o golpe foi no dia
1º. Essa história de 31 é invenção dos milicos porque tinham vergonha do 1º de
abril. O golpe foi oficialmente no dia 1º de abril, quando Jango sai do Brasil
e se refugia no Uruguai. Eu estava participando do Congresso Latino-americano
de Estudantes em Belém, no Pará
UOL
– Como o senhor recebeu a notícia?
Frei
Betto - A notícia veio de maneira
difusa, confusa, de que havia movimento de tropas, que o Jango tinha passado
por Brasília, depois ido a Porto Alegre e de lá saído ao Uruguai, porque estava
deposto. O Congresso foi desfeito porque ali participavam estudantes de quase
todos os países da América Latina, muitos deles acostumados a golpes militares.
Eles
sentiram que a coisa ia endurecer. Estava hospedado na casa do arcebispo de
Belém dom Alberto Gaudêncio Ramos porque eu era dirigente da Juventude
Estudantil Católica (JEC) e da Ação Católica também. Fui pra casa de
um militante da JEC chamado Lauro Cordeiro.
E
ali fiquei, de ouvido colado no rádio, tentando entender o que estava
acontecendo, e fomos tomando consciência, a partir do dia 2 ou 3 [de abril], de
que realmente havia um golpe militar, que começava uma repressão. Nós esperávamos
uma reação das forças esquerda, do PCB (Partido Comunista Brasileiro), da Ação
Popular, das Ligas Camponesas, reação que nunca veio. Praticamente os
militares assaltaram o poder sem precisar dar nenhum tiro.
UOL
– Essa reação não ocorreu por quê?
Frei
Betto - Não ocorreu porque era um blefe.
Realmente a esquerda não estava suficientemente organizada.
Primeiro,
não acreditava que houvesse um golpe, porque
havia um mito de que o Jango detinha pleno controle das Forças Armadas. E que
os generais que eram ministros dele jamais haveriam de traí-lo. O esquema
militar do Jango era um mito que se alimentava.
Em
segundo, porque a esquerda era muito
proselitista, mas não fazia um trabalho de organização popular. Não havia um
trabalho de base como houve depois da ditadura. Era uma esquerda muito mais
discursiva, ideológica, mas que não tinha uma capacidade de mobilização popular
como se imaginava que tinha ou se esperava que tivesse para reagir ao golpe.
UOL
– Naquele momento o que lhe passava pela cabeça?
Frei
Betto - Meu pai já tinha vivido sob uma
ditadura, de [Getúlio] Vargas, já tinha sido preso, nos anos 30, teve que
deixar o Rio de Janeiro, onde exercia a advocacia, e voltar a Minas porque
forças de Vargas cercearam qualquer possibilidade dele de arrumar emprego. Ele
me descrevia a ditadura como uma coisa cruel, assassina, com censura, sem
nenhuma liberdade de expressão.
Comecei
a esperar que a mesma coisa viesse a acontecer. E fui atingido na pele só no
dia 6 de junho de 1964, quando eu voltei ao Rio de Janeiro, onde morava, e ali
eu fui preso com a direção da JEC, da JUC (Juventude Universitária Católica) e
da Ação Católica, pelo serviço secreto da Marinha na madrugada de 5 para 6 de
julho.
UOL
– Nessa primeira prisão, onde o senhor ficou?
Frei
Betto - Primeiro eu fui levado até o comando
da Marinha, na praça Mauá (centro do Rio), onde nós fomos torturados,
interrogados e transferidos para Ilha das Cobras (RJ), no quartel
de fuzileiros navais. Ficamos uma semana presos e depois fomos levados de volta
ao apartamento em que morávamos por conta da CNBB, mas
especificamente por conta de d. Helder Câmara, que era o assistente
da Ação Católica, e ficamos em prisão domiciliar mais uma semana. Depois fomos
liberados sem que houvesse processo formal.
UOL
– Nesse período chegou a haver tortura?
Frei
Betto - Houve tortura. Quando fomos levados
para o comando naval, houve tortura. Não nos moldes de 1969, quando fui preso
de novo, mas houve tortura, com sopapos, soco na cara, empurrão.. Não houve
pau-de-arara, choque elétrico, essas coisas.
UOL
– O senhor poderia descrever qual era o clima político do país naquele momento?
Frei Betto - Era um clima de absoluta
perplexidade. Em meados de abril de 1964, numa reunião no Rio da qual
participei como membro da direção nacional da Ação Católica, houve uma
furiosa discussão entre bispos conservadores e progressistas, tendo ganhado o
setor conservador.
E
a CNBB oficialmente apoiou o golpe por ter livrado o Brasil da ameaça
comunista. O caldo de cultura do golpe já
havia sido preparado pela CIA no Brasil através do padre Patrick
Peyton, que era o pároco de Hollywood e veio ao Brasil.
Hoje
já se sabe com documentos que ele era pago pela CIA para fazer as
Marchas da Família com Deus pela Liberdade. Ele promovia grandes
mobilizações nesse sentido.
Portanto,
quando veio o golpe, a igreja agradece a Nossa Senhora Aparecida ter livrado o
Brasil da ameaça comunista. Ao mesmo tempo havia aquela ideia de que a ditadura
não duraria muito tempo porque [depois do golpe] não houve propriamente uma
manifestação popular de apoio explícito.
Então
se pensava que os militares não teriam respaldo da opinião pública. Nos
enganamos. A ditadura não só foi se aprimorando na sua crueldade, no seu
desrespeito aos direitos humanos, principalmente a partir de 68 com o AI-5,
como também ela durou 21 anos, o que na época ninguém esperava que acontecesse.
UOL
– Pelo o que o senhor diz, a igreja estava dividida naquele momento. Ou os
setores que eram contrários ao golpe ainda eram minoritários?
Frei
Betto - Eles eram minoritários. Os bispos
tinham uma formação tradicional. Os primeiros bispos progressistas estavam
praticamente aparecendo no cenário brasileiro, como o d. Helder
[Câmara], o d. Waldyr Calheiros, que era bispo de Volta Redonda
(RJ), o d. José Vicente Távora, de Aracaju. Mas eram poucos.
O d.
Carlos Carmelo Mota, de São Paulo (presidente da CNBB à época), era um moderado,
mais para progressista. Era muito amigo do Juscelino [Kubistchek]. Mas o d.
[Vicente] Scherer, que era arcebispo de Porto Alegre, o d.
Jaime Câmara, que era arcebispo do Rio, eles eram muito
conservadores e tinham muita força.
Havia
também dois militantes de extrema direita no episcopado, que eram o d.
Geraldo Proença Sigaud, de Diamantina (MG), e d. [Antônio de]
Castro Mayer, de Campos do Goytacazes (RJ), que eram patronos da TFP
(Tradição Família e Propriedade). Esses eram dois militantes ferozes do
fundamentalismo conservador na igreja. E tiveram muita atividade, muito
empenho, nessa aprovação do golpe por parte da CNBB.
UOL
– Como o Vaticano e o papa Paulo 6º se posicionavam?
Frei
Betto - O papa não se posicionou no início.
Mais tarde, o Vaticano veio a censurar a ditadura. Porque com o tempo a
repressão se estendeu também à igreja e daí criou-se não só uma divisão na
igreja, mas a própria CNBB foi se afastando da ditadura.
A
partir dos anos 70 a CNBB foi praticamente a grande voz de defesa das vítimas
da ditadura. Tanto que o mais importante documento sobre os mais de 20 anos de
ditadura foi produzido pelo d. Paulo Evaristo Arns, que é o
livro “Brasil Nunca Mais”, que ele fez também com o reverendo
Jaime Wright.
A
igreja e a própria CNBB se tornaram, a partir do AI-5, uma voz contra a
ditadura. A igreja mudou de posição à
medida que padres, bispos e religiosos eram também perseguidos e vitimizados
pela ditadura.
O d.
Adriano Hipólito, por exemplo, bispo de Nova Iguaçu (RJ), foi
apreendido e torturado. O d. Marcelo Carvalheira, que era assessor
de d. Helder, foi preso comigo no Rio Grande do Sul. Toda essa repressão que
atingiu os bispos fez com que a igreja assumisse cada vez mais uma
posição crítica à ditadura.
Na
medida em que os bispos foram se posicionando, Paulo VI veio em apoio, tanto
que na prisão dos dominicanos se manifestou explicitamente a nosso favor.
Enviou-nos de presente um rosário feito de contas de oliveiras de Jerusalém e
um cartão manuscrito “como um testemunho de afeição, Paulo VI”. Tivemos
um apoio explícito nos quatro anos em que estivemos presos.
UOL
– E os bispos conservadores, como ficaram após essa virada na CNBB?
Frei
Betto - Eles ficaram em minoria. Alguns foram
morrendo, outros foram aposentados por razão de idade ou de doença,mas eles
foram perdendo a hegemonia da CNBB, que passou para as mãos dos progressistas,
que eram críticos contundentes da ditadura e, portanto, defensores dos direitos
humanos. Você vê surgir uma igreja progressista, das Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs), das pastorais populares, assumindo uma posição
bastante consequente, contundente, contra a ditadura militar.
UOL
– Mas também houve repressão contra as CEBs.
Frei
Betto - Sempre houve. Quanto mais a
igreja se posicionava, mais havia repressão. Houve repressão sobre todos
aqueles que se opunham à ditadura.
UOL
– Antes dessa virada, havia trânsito entre os militares e lideranças da igreja?
Frei
Betto - Havia. Como o caso do d.
Eugênio Sales, no Rio, cuja postura até hoje, no meu ponto de
vista, não está devidamente esclarecida. Ele alega que ajudou
perseguidos, mas eram perseguidos do Uruguai, da Argentina e mesmo assim eu
pessoalmente não conheci nenhum dos perseguidos do Cone Sul que tenham sido
ajudados por ele.
Sei
que no caso dos perseguidos brasileiros, com exceção de algumas pessoas
notórias, como intelectuais e jornalistas, ele se omitiu inteiramente. Pelo
menos foi assim nos casos dos dominicanos.
UOL
– Havia delatores dentro da igreja?
Frei
Betto - Isso sempre aconteceu. Não foi uma
coisa maciça, mas aconteceu. Eu mesmo fui interrogado no Dops (Departamento de
Ordem Política e Social) de São Paulo pelo delegado Alcides Cintra
Bueno, que era conhecido como delegado oculto.
Ele
tinha delatores dentro da igreja. Tinha
padres, freiras, frades, pessoas que achavam, sei lá, em sã consciência que
estavam ajudando a livrar o Brasil do comunismo, a purificar a igreja. Havia
sim delatores dentro da igreja, como há em qualquer instituição, dentro do
jornalismo, no teatro, em sindicatos. Isso sempre houve.
UOL
– Como avalia o impacto do golpe na igreja?
Frei
Betto - Eu acho que o impacto foi muito
positivo. Porque levou a igreja a se conscientizar do que é uma ditadura
e do papel dela em defesa das vítimas, dos direitos humanos, dos mais
pobres. São males que vem para o bem. Ou seja, a ditadura acabou
produzindo uma grande renovação da igreja no Brasil, renovação que depois
se perde bastante com o pontificado do João Paulo 2º.
UOL
– Esta renovação interrompida se recupera hoje?
Frei
Betto - Agora com o papa Francisco (risos)
nós estamos virando a página. Ainda a maioria dos bispos e padres que
temos é resultado dos pontificados de João Paulo 2º e Bento 16. Então
não dá para ser otimista imediatamente, mas, a médio prazo, sim.
Tenho
impressão que a Igreja Católica vai passar por uma grande mudança, com a volta
das CEBs e daquela igreja progressista, que, diga-se de passagem, enchia os
templos da Igreja Católica, não havia essa evasão que há hoje. A evasão
coincide com a repressão às CEBs, às pastorais populares. Tenho a impressão
que vamos voltar a um novo alento aí na Igreja Católica com o papa Francisco.
UOL
– Como a igreja vem se comportando nesse processo de rediscussão da ditadura,
com as Comissões da Verdade?
Frei
Betto - Vem se comportando muito bem,
inclusive dando todo apoio, assessoria, documentação. Aliás, toda a
documentação mais importante que existe sobre a ditadura foi feita pelo
trabalho da igreja, do d. Paulo Evaristo Arns e do reverendo Wright. Eles
que fizeram essa documentação, que foi microfilmada, levada para Suíça,
recentemente retornou e hoje está à disposição dos pesquisadores em São Paulo.
O Outro lado
Procurada
pela reportagem do UOL, a Embaixada dos EUA no Brasil
informou não ter “como fornecer nenhuma análise histórica desse
período”.
A
reportagem do UOL entrou em contato por telefone com a
assessoria de imprensa da CNBB na última terça-feira (18) para que comentasse
as afirmações feitas por Frei Betto. Até o fechamento do texto, às 20h desta
quarta-feira (19), a entidade não havia respondido as perguntas enviadas por
email.
20/03/2014
___________________
* Guilherme Balza
Produção: Noelle Marques
Fonte: noticias.uol.com.br
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