Abaixo,
uma reportagem bem interessante sobre o tema de canonização de pessoas pela
Igreja Católica. Para quem estiver interessado em conhecer essa questão do
ponto de vista de uma pessoa que mais conhece os bastidores da “fábrica de santos” no Vaticano, do cardeal português Saraiva Martins, encontrará aqui muitas informações e detalhes curiosos.
Foi publicada recentemente no site do Instituto Humanitas Unisinos (IHU).
Vale
a pena ler!
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IHU
– Notícias
Quarta,
23 de abril de 2014.
Santificação
expressa no Vaticano
O
currículo do cardeal português Saraiva Martins exposto na página oficial da
Santa Sé é um relato breve, e isso que não se atualiza desde janeiro de 2012.
Se fosse preciso lhe dar um título, lhe faria justiça algo do tipo “Sempre
esteve aqui” ou “A cúria sou eu”. Chegou a Roma em 1954, quando ainda reinava
Pio XII, e seis pontífices depois – João XXIII, Paulo VI, João Paulo I, João Paulo II,
Bento XVI e Francisco
– ainda continua ali, agora como prefeito emérito (tem 82 anos) da Congregação
das Causas dos Santos, também conhecida como “a fábrica de
santos”.
A
reportagem é de Pablo Ordaz,
publicada pelo jornal El País,
20-04-2014.
Desde
tão elevado posto na cúria, não em vão é onde se emitem os certificados de
santidade, o cardeal Saraiva Martins dirigiu em maio de 2005 os primeiros
passos da beatificação expressa de Karol Wojtyla, morto apenas um mês antes, depois de 27 anos de papado, dos quais mais de dois (exatamente 822 dias) passou
visitando 129 países. Depois de uma longa doença retransmitida ao vivo, o papa
polonês morreu no dia 2 de abril de 2005, e dos seus funerais – aquele ataúde
simples para um pontífice sob cujo sorriso todo o poder e a corrupção do Vaticano
soube se esconder – recorda-se, sobretudo, um clamor em forma de frase
repetida: “Santo súbito!”. Um grito que foi capaz de comover seu sucessor, o
até então cardeal alemão Joseph Ratzinger, que assim que se
vestiu de branco, como Bento XVI, ordenou a Saraiva Martins que iniciasse o processo para elevar João
Paulo II aos altares. O que se concretizará na cerimônia do
próximo domingo, na qual também será canonizado João XXIII.
— Boa
tarde.
—
Boa tarde, sente-se, sente-se...
Os
cardeais são os príncipes da igreja, e mesmo depois da chegada de Jorge Mario Bergoglio e
seus sapatos negros de sola gasta, muitos deles continuam vivendo em
consonância. O apartamento de José Saraiva Martins (Gagos do Jarmelo,
1932) está justo na esquina da praça de São Pedro, o zelador da propriedade usa
o uniforme do Vaticano, sobre o lintel figura seu
escudo e sua legenda – Veritas in Charitate – e, assim que
ele toca uma grande campainha dourada, uma das freiras portuguesas que o
atendem abre a porta. O cardeal Saraiva Martins responde às perguntas com
simpatia e às vezes sublinha as frases com um sorriso velhaco que parece dizer:
se você soubesse... Em cima da mesa há uma pasta de plástico de capa preta que
ele só abrirá no final da conversa.
— Os processos de beatificação e
canonização costumam ser muito mais longos. Por que foi tão rápido no caso de João Paulo II?
—
As regras dizem que não se pode começar o processo até cinco anos depois da
morte. Mas nesse caso foi tão breve porque, no dia 3 de maio de 2005 (justo um
mês depois da morte de Karol Wojtyla),
Benedito XVI dispensou a necessidade dessa espera. E no
dia 9 de maio, o prefeito da Congregação das Causas dos Santos,
que era eu, assinou um decreto solicitando que se começasse rapidamente o
processo. Tudo foi muito rápido.
—
Segundo as regras da Santa Sé, é
preciso um milagre para a beatificação e outro para a canonização, sendo que
esse segundo milagre deve acontecer depois da beatificação. Então por que o papa
Francisco decidiu tornar santo também João
XXIII, ao qual não se reconhece o segundo milagre?
—
Veja. Em primeiro lugar, o papa tem o poder de dispensar a existência de um
milagre. E isso é assim porque entre os milagres e a santidade não há um
vínculo intrínseco, digamos, metafísico. Pode-se se ser santo tendo vivido a fé
de forma heroica, e não ter feito nenhum milagre.
—
Então porque isso é exigido?
—
Porque é uma espécie de selo que Deus coloca para nos confirmar que essa pessoa
é santa. Por exemplo, se o senhor pede alguma coisa por intermédio do padre Pio
e deus faz o milagre, já sabemos que entre Deus e o padre Pio
há uma comunhão. Se esse selo falha, a carta, ou seja, a santidade, continua
existindo, mas é mais difícil que chegue ao seu destino...
A
fábrica de santos tem um só patrão, o Papa. Apenas ele tem o poder de
decidir quem finalmente merece ser elevado aos altares. Um poder que serve
também para desenhar o modelo de Igreja que cada pontífice deseja. Um exemplo
muito claro é a decisão de Francisco de impulsionar o processo
de beatificação do arcebispo salvadorenho Óscar Arnulfo Romero, assassinado em 1980 enquanto oficiava missa. Sua causa foi
eperrada durante anos pela Congregação para a Doutrina da Fé,
a antiga Santa Inquisição, à qual até ontem não lhe agradava
especialmente – ou seja, nada – “a opção preferencial pelos pobres” do monsenhor
Romero e menos ainda as suas críticas – as mesmas que lhe
custaram a morte – ao exército salvadorenho.
Não deixa de ser
curioso que os que mais batalharam durante anos contra a Teologia
da Libertação fossem precisamente o cardeal Joseph
Ratzinger como prefeito da Congregação para a Doutrina
da Fé e o papa João Paulo II. O próprio Ratzinger
acaba de contar ao jornalista polonês Wlodzimierz Redzioch, que publicou um livro – Accanto a Giovanni Paolo II (Ao
lado de João Paulo II) –, no qual amigos e colaboradores de Karol
Wojtyla falam de suas virtudes. “O primeiro grande desafio que
enfrentamos juntos”, lembra o papa
emérito, “foi a Teologia da Libertação que estava
se difundindo na América Latina. Tanto na Europa como na América do Norte
compartilhava-se a opinião de que estava baseada em ajudar os pobres e que,
portanto, tratava-se de uma causa que devia ser apoiada. Mas era um erro”.
As
más línguas do Vaticano, que continuam existindo
apesar dos contínuos ataques de Jorge Mario Bergoglio contra o
vício da “fofoca”, atribuem a canonização conjunta dos dois papas
a uma manobra de Francisco para tirar protagonismo
de Wojtyla e dá-lo a João XXIII, um pontífice mais do
seu estilo, um bispo bonachão que continua sendo lembrado – sobretudo na Itália
– como “o Papa Bom”. Pode-se ver também um gesto de Francisco
a favor de todas aquelas congregações ou dioceses cujos candidatos à santidade
oficial, tendo vivido as virtudes que manda a Igreja, não dispõem de um aparato
econômico nem mediático tão potente como o do papa polonês.
O processo
normalmente é lento e caro. Só o primeiro documento a favor do novo beato custa
6.000 euros (18.540 reais)
É
preciso lembrar que se trata de uma corrida difícil, longa e, sobretudo, cara.
Estima-se que, até agora, uma causa de beatificação não custava menos de meio
milhão de euros (1,5 milhão de reais). E não há descontos. Quem não conseguia
reunir dinheiro suficiente ficava sem santo. Daí que, a pedido de Bergoglio,
no último mês de janeiro, tenham se aprovado umas novas tarifas para que,
segundo o cardeal Angelo Amato,
prefeito da Congregação das Causas dos Santos, “as congregações e as
dioceses não vivessem com a angústia de não saber quanto ia lhes custar o
processo”. Isso sim, embora se suponha que as tarifas serão mais claras e mais
baratas, continuam não sendo públicas. Os principais gastos se dividem entre as
taxas do Vaticano – só a apresentação do primeiro documento a favor de um novo
beato (a “positivo”) custa 6.000 euros - e os honorários do postulador.
Trata-se
da pessoa, normalmente um sacerdote, que tenta mover céus e terra para seu
aspirante a beato ou santo obtenha o devido reconhecimento por parte da Santa
Sé. Mas, como tudo na vida e na morte, também na
carreira para santo há classes. Não é a mesma coisa defender a causa de João
Paulo II do que, para dar um exemplo, a de Dom
Baltasar Pardal Vidal (1886-1963), um sacerdote catequista que
fundou na Galícia as escolas A Grande Obra de Atocha e o
instituto secular Filhas da Natividade de Maria. O
postulador de Karol Wojtyla se chama Slawomir
Oder e seus distintos livros sobre o processo podem ser
encontrados atualmente nas vitrines das livrarias de Roma, onde entre os
volumes dedicados a Wojtyla e os que louvam Bergoglio
quase não sobra espaço para a literatura mundana.
A
propósito, o postulador Oder cometeu uma gafe há alguns
anos quando publicou um livro usando algumas das informações sobre João
Paulo II – testemunhos, segredos, anedotas – obtidas durante
sua investigação. Um dos que protestaram foi o secretário pessoal de Karol
Wojtyla e atual arcebispo da Cracóvia, Stanislaw
Dziwisz, o mesmo que agora acaba de publicar as
anotações pessoais de João Paulo II, embora esse tenha
deixado bem claro que, após sua morte, deveriam ser queimadas. Se para os
crentes um papa é o vigário de Cristo na
terra, após sua morte corre o risco de que seus colaboradores mais próximos
dividam entre si sua túnica ou a vendam àquele que fizer o melhor lance.
As Filhas da Natividade de Maria, em contrapartida, têm que alternar as obras de caridade
– “temos um colégio que atende crianças de classe baixa ou média baixa onde
muitos pais não podem pagar a alimentação”, diz soror Pastora
Vera – com economizar dinheiro suficiente para “manter” seu
postulador, um membro da cúria vaticana que vive na residência de Santa
Marta. “Não é barato, não”, diz a filha da
Natividade de Maria, referindo-se ao processo
de canonização de Dom Baltazar, “é
preciso pagar as gestões, as viagens à Roma, as instâncias ante do Vaticano,
as conferências e as publicações que fazemos para que a obra do fundador seja
bem conhecida. E depois há o problema dos milagres”.
A
religiosa conta que uma coisa é que Dom Baltazar tenha realizado várias
curas – “e fez muitas” – e outra que os médicos “se atrevam a certificar que,
cientificamente, tratou-se de um milagre”. O postulador de João
Paulo II, entretanto, não teve problemas. Sobre a sua mesa se
acumularam até 251 supostos milagres, assim como a cura da freira francesa Marie
Simon-Pierre, que sofria de Parkinson, e
a da costarriquense Floribeth Mora,
vítima de um aneurisma cerebral, que foram aquelas levadas em
conta oficialmente. Com seus brilhos próprios – um papa espontâneo, viajador,
carismático, que pela primeira vez condenou a Máfia – e suas muitas sombras – o
ter se negado a investigar a pederastia, seu ataque à Teologia da Libertação, o desgoverno de uma cúria voraz que acabou
amargando a vida de Bento XVI
--, João Paulo II
acabou por converter-se em lenda do alto de sua própria cruz. Embora tenha
pensado em renunciar, deixou que a doença o consumisse diante das câmeras,
lentamente, rigorosamente ao vivo. O cardeal Saraiva Margins
diz:
-
Seu heroísmo já se manifestou em toda sua crueza durante o atentado de Ali Agca,
mas, sobretudo, se fez patente nos últimos anos da sua doença. Eu estava ali,
ao seu lado, e vi esse homem sofrer.
........
E
só então, Saraiva Martins se inclina e abre sua pasta
de plástico negro para mostrar uma por uma, como um tesouro, as fotografias de
toda uma vida à sombra dos papas.
Fonte: IHU - Notícias
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