O texto foi publicado em julho de 2014 pelo autor
no seu blog O Ingovernável, e também
no site do Instituto Humanitas Unisino (IHU).
Para contribuir um pouco na divulgação, trago este
artigo também para o blog Indagações –Zapytania.
Vale a pena ler!
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Segunda, 07 de julho de
2014
Por que o racismo contra
indígenas é o maior de todos no Brasil?
"Todas as
potencialidades de uma tradução cultural que poderia constituir um Brasil
plural e inclusive referencial para um novo modelo sócio-econômico ficam
soterradas por um projeto monolítico com uma única missão: progredir, produzir,
consumir". O comentário é de Moysés Pinto Neto em artigo publicado no blog O
Ingovernável, 06-07-2014.
Eis o artigo.
Admito que é uma
estratégia que pode não apenas parecer de mau gosto, mas até de certa
perversidade, ficar comparando graus de racismo. Pode parecer que se está
desprezando o sofrimento de quem quer que o sofra em algum grau, e tudo isso já
seria por si só eticamente inadmissível. No entanto, não é essa minha intenção.
Ela é simplesmente a de chamar atenção para uma questão relevante e para um
processo em curso que muitas vezes não encontra a mesma repercussão exatamente
porque se está diante de um fenômeno extremado. É o caso do racismo contra os
indígenas no Brasil.
Tradicionalmente tidos
como “primitivos” e por muitos dados por “extintos”, os índios hoje constituem
uma parte relevante da população brasileira inclusive populacionalmente, uma
vez que vêm tendo alguns focos de recuperação após a Constituição de 1988 e o
início das demarcações de terras diante de um massacre de 500 anos. A
atribuição de “primitivos” hoje não faz qualquer sentido na medida em que são
nossos contemporâneos, a menos que nos consideremos tão superiores aos demais
povos que toda aquela cultura que não é a nossa é algo que está “atrás”,
“chegando” na nossa, mesmo que ela se passe ao mesmo tempo, tomando diferença
por inferioridade. Afora esse preconceito etnocêntrico, Eduardo Viveiros de Castro tem demonstrado ao lado
de outros importantes antropólogos que a cultura indígena é também um
referencial que pode ser uma linha de fuga para o colapso civilizacional que o
Ocidente vive em termos ecológicos, à medida que se contrapõe à nossa
“necessidade extensiva” como uma “suficiência intensiva”.
A vida baseada no baixo
impacto ambiental dos índios contrapõe-se ao nosso impulso destrutivo que na
maioria das vezes, embora materialmente insustentável, justifica-se com base em
padrões messiânicos que, mesmo secularizados, continuam alimentando o
imaginário político do Ocidente, sobretudo na ideia de “senhorio” da natureza,
como se a Terra fosse nossa propriedade numa espécie de “destino comum” a que
chegaríamos no fim da História. A forma ameríndia de pensar é completamente
diversa, mas não cabe a mim, um mero iniciante nessas questões, desenvolvê-la.
Queria apenas afastar qualquer tipo de justificação racional para a forma
racista como o índio é visto, mostrando que se trata não de racionalidade, mas
de racionalização (no sentido freudiano).
Por que o racismo contra
os índios é o mais intenso hoje em dia? Simples: porque os setores políticos
que se dirigem contra a injustiça ainda estão majoritariamente abastecidos pelo
eurocentrismo e, como tais, pela teleologia do progresso. Assim, de alguma
forma existe um destino comum (pode colocar o “comunismo” aí) que nos uniria e
libertaria do capitalismo, proporcionando a emergência de novos regimes sociais
e econômicos. Que os índios tenham que ser libertados do capitalismo, não há
dúvida. Eles sentem esses efeitos por todos os lados, seja pelo colonialismo do
agronegócio e da pecuária, seja por verem cada vez mais seu espaço social de
convivência reduzido às franjas urbanas, identificando-se com os pobres das
cidades e tendo que garantir sua subsistência com artesanato e assistência
social do Estado. No entanto, sem dúvida eles não se identificam com a figura
do trabalhador explorado que percorre o imaginário da esquerda tradicional.
A questão é que esse
imaginário é totalizante e autoritário: ele não aceita dissidência e
pluralismo, trabalha a partir de oposições simples e reduz toda figura que
transborda a um reflexo pálido de um dos polos. Isso significa que, provando
sua brutal ignorância antropológica, boa parte da esquerda, e em especial a que
hoje governa o país, considera que o índio é alguém que precisa ser “incluído”,
ser transformado em trabalhador e se unir à luta dos demais contra o
capitalismo. Em outros termos, essa esquerda subscreve o etnocídio que
significaria erradicar as culturas indígenas e as desfigura para que caibam no
seu esquadro reduzido que obviamente é um reflexo torto do mundo europeu. Todas
as potencialidades de uma tradução cultural que poderia constituir um Brasil
plural e inclusive referencial para um novo modelo sócio-econômico ficam
soterradas por um projeto monolítico com uma única missão: progredir, produzir,
consumir.
Aqueles que estão fora
desse espaço de disputa, embora sintam nas margens os efeitos perversos,
simplesmente não existem para essas representações. Não existem. Tenho vários
amigos governistas e toda vez que lanço o argumento do que o Governo Federal
vem fazendo em torno de ofensiva anti-indígena a conversa simplesmente estanca.
Ou desvia-se. Perguntado a um importante intelectual brasileiro mais ou menos
alinhado ao Governo sobre a dissidência indígena, ele respondeu recentemente
que ela “talvez” exista. Nas linhas escritas pelos defensores do Governo Dilma
os índios simplesmente não aparecem, a questão não existe. “Índios, pena que já
morreram todos, não?” Aliás, a própria questão do reconhecimento do índio é
usada como contra-argumento: “índio? Mas usa celular!”. Como se as culturas não
se transformassem, como se elas, por se manterem, significassem oásis de
pureza, e como se uma das coisas que mais chamasse atenção nas culturas
ameríndias fosse exatamente sua vocação antropofágica, seu olhar para o outro
que fratura do eu. De qualquer forma o índio sempre perde: se veste calça
jeans, não é o índio; se não veste, é primitivo. As duas situações levam ao
mesmo raciocínio: acabar com eles.
Assim, enquanto os
movimentos negro, feminista e LGBT, por exemplo, conseguiram capitalizar
suas demandas e transformar-se em força política de peso, inserindo suas
demandas no quadro da política, os índios são objeto de uma indiferença atroz
(ressalvadas algumas mobilizações importantes que vem em crescente, mas recebem
o silêncio institucional como resposta). A indiferença da invisibilidade, da
não-questão, da falta de importância. E nesses termos o discurso da esquerda é
exatamente igual ao da direita, que ao fim e ao cabo deseja mesmo é por fim de
vez nos índios (“por que demoram tanto!? Esses latifundiários de terra!”). É
quase como dissesse: “Não tem como resolver e falta tão pouco para que eles
acabem… que terminem logo!”.
Enquanto a esquerda
simplesmente ignora a questão, tratando como um problema menor diante da
exploração do trabalhador pelo sistema capitalista ou da conquista da igualdade
social, ela repete, consciente ou inconscientemente, o projeto da direita, que
é erradicar os índios para que os verdadeiros latifundiários possam avançar
também sobre essas terras e no final transformar todo o verde em verdinhas.
Isso me traz de volta à questão do por que, afinal, o racismo contra os índios
é o maior? A resposta é: porque ele é o único que pode ser explicitado como
racismo na esfera pública. Os negros nos anos 50 e 60 tinham que conviver com
declarações racistas de políticos do Sul dos EUA quando militavam pela
igualdade de direitos. Hoje, ninguém se atreveria a fazer declarações racistas
senão como um ato falho ou em forma de piada (último esconderijo do racismo).
Ninguém pode chegar na
esfera pública e declarar que é racista ou que negros são isso ou aquilo. Com
os índios, pode. Uma pessoa pode, como um candidato a senador do Rio Grande
do Sul recentemente fez, dizer que “quantos índios no Brasil deixaram de
ser índios e se tornaram profissionais respeitados?” Troque índio por negro e
se vê o que acontece. Mas não só ele, que é um candidato imediatamente
identificado com o conservadorismo. Também tem gente de esquerda (ou de
ex-querda, dizem as más línguas) afirmando que a cultura indígena vai terminar
mesmo, e o que se pode fazer é incluí-lo e transformá-lo no pobre trabalhador.
A ideologia do progresso está embutida nesse pensamento. Deveríamos relacionar
sem pudores essa estratégia à “cura gay”: o que se quer é que o índio não seja
mais índio porque não se quer mais diferença. “Incluímos desde que você não
seja mais índio”. Ou: “vamos te curar do primitivismo”. A atrocidade disso é
patente.
Por isso, a diferença do
racismo com os índios em relação a outras modalidades hoje em dia é essa: os
índios são o único grupo social a quem se pode dirigir na esfera pública
propondo o extermínio da sua condição especial. Talvez não o único, mas o mais
atacado, isso não importa: a questão aqui não é de quantidades, mas de um
modelo insuportável de racismo que sobrevive e justifica a ofensiva
anti-indígena mais intensa desde a época da Ditadura Militar que vivemos hoje
em dia.
Fonte: IHU - Notícias
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