No contexto
dos últimos acontecimentos no mundo, isto é, dos atentados terroristas na
França e também na Nigéria, acho importante ter a possibilidade de uma reflexão
mais acalentada e, ao mesmo tempo,
esclarecedora sobre o assunto. Essas características possui o artigo que hoje trago para o blog Indagações-Zapytnia, do jesuita
Jaume Flaquer.
Foi publicado recentemente
também no site do Instituto Humanitas Unisinos (IHU).
Vale a pena
ler!
WCejnóg
IHU - NOTÍCIAS
Segunda, 12 de janeiro de 2015
“Vingamos o profeta Muhammad”
"Mas,
não nos enganemos, a guerra não é entre o Islã e o Ocidente, senão que na
realidade se trata de uma verdadeira guerra civil no interior do Islã entre
diversas maneiras de entender a mensagem do Profeta", escreve Jaume Flaquer, jesuíta, em artigo publicado pelo blog Cristianisme i Justícia, 07-01-2014. A tradução é
de Benno
Dischinger.
Eis
o artigo.
Com este
grito disparava à vontade um dos terroristas nas oficinas do semanário satírico Charlie Hebdo, uma espécie de “El
Jueves” [A
Quinta-feira] francês, provocando ao menos doze mortos. Este semanário já tinha
recebido diversas ameaças e havia sido atacado em novembro de 2011, depois de
fazer uma edição especial intitulada “Charia Hebdo” sobre
o triunfo dos islamitas em Túnez.
Recordemos
alguns anos antes, em 2005, o diário dinamarquês Jyllands
Posten publicou
doze caricaturas de Muhammad [Maomé],
uma delas com um turbante-bomba, que incendiaram de cólera o mundo islâmico em
inícios de 2006. Dois anos depois, a polícia evitou o assassinato do
desenhista.
Na raiz
de tudo isto, Charlie
Hebdo tomou peito
e denunciou satiricamente o fundamentalismo islâmico com uma explosiva folha de
rosto na qual se via Muhammad dizendo: “É duro ser amado por
estúpidos!”. Isto sucedia também em 2006. Mais recentemente, líamos “O Corão é
uma merda, não detém as balas”, na folha de rosto de 19 de julho de 2013, onde
um islamita egípcio tentava defender-se de uns disparos com o Corão. Em outro número apresentava uma “vida de Muhammad” não menos desagradável.
Apesar do
mau gosto deste tipo de periodismo, e do humor-denúncia através do insulto que
se estendia para todas as demais religiões, nada pode justificar um atentado
terrorista. Assim o entendeu o presidente da conferência dos imanes da França
quando se apressou a considerar as vítimas do semanário como verdadeiros
“mártires” e denunciou os terroristas dizendo: “Mas, de que Profeta estão
falando? Não temos o mesmo profeta. Seu profeta é o do ódio e do horror”. O ímã
de al-Azhar e a Liga Árabe também
condenaram firmemente o atentado.
A atual
situação do Oriente Próximo deve preparar-nos na Europa para este tipo de
atentados, e inclusive maiores. O Estado Islâmico fez
um chamamento a todos os muçulmanos a incorporar-se ao Estado
Islâmico na Síria e
a legitimar sua permanência na Europa unicamente com atentados.
Mas, não nos enganemos, a guerra não é entre o Islã e
o Ocidente, senão
que na realidade se trata de uma verdadeira guerra civil no interior do Islã entre
diversas maneiras de entender a mensagem do Profeta. Nesta guerra, o que na
verdade está em jogo é se deve ser aplicada fisicamente a lei islâmica
medieval, ou se antes deve existir uma nova legislação para os tempos atuais.
A
resposta não é tão simples, já que a maioria dos muçulmanos foram educados numa
mitificação de suas origens, numa exaltação da expansão muçulmana e num
princípio de fé segundo o qual a última legislação revelada é a que desceu
sobre o Profeta Muhammad. Esta tem sido demasiado rapidamente identificada
com os códigos jurídicos dos séculos IX e X.
Na
prática, o que sucede no interior do Islã é que a maioria dos muçulmanos
continua lendo esta literatura medieval, que enche as livrarias islâmicas, mas
considerando que não deve aplicar-se em sua grande maioria, senão que deve
apresentar-se como uma “advertência” de
Deus sobre a gravidade de certos comportamentos humanos. Por isso, a maior
parte dos países muçulmanos combina elementos do direito ocidental
(especialmente o francês) com alguns inspirados (não literalmente) na lei
islâmica tradicional.
Este
“gap”, este salto entre a literatura medieval lida e admitida, e sua não
aplicação é o ponto de apoio ideológico do fundamentalismo islâmico atual.
Por isso,
contra o que crê uma parte da opinião pública ocidental, os muçulmanos
condenam, sim, os atentados, condenam, sim, o terrorismo islâmico, posto que,
na maioria dos casos, são eles mesmos os que o sofrem e são vítimas. Porém sua
voz não chega a ouvir-se porque, creio eu, não chega a tocar o verdadeiro problema:
o estudo científico sobre a origem do islã, sobre a história de redação do Corão e
sobre o verdadeiro processo de formação dos códigos jurídicos medievais. O
fruto de tudo isso não será outro que o centrar-se na pura adoração da
unicidade divina.
Enquanto o Ocidente há de ser cauto e inteligente para distinguir o mundo
‘salafi’ fundamentalista do tradicionalismo islâmico (porém pacífico) que domina o panorama
europeu. Caso contrário, deixaremos crescer a islamofobia, com a ingênua crença
que estamos culturalmente tão desenvolvidos que não podemos voltar ao passado,
ao obscuro passado que deu lugar à expulsão dos mouriscos.
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