O artigo 1500, o ano que não
terminou, de Eliane Brum, é muito expressivo. É
relacionado ao caso do assasinato do menino indígena Vitor Pinto e foi
publicado no início deste mês (janeiro de 2015) no site EL PAÍS.
Pode ser, obviamente, que este caso seja
um lamentável episódio causado por alguém desequilibrado mentalmente ou um
criminoso solitário, e espera-se que isso seja rigorosamente apurado e julgado
pelos órgãos competentes, mas mesmo assim constitui mais um crime praticado
contra os indígenas no Brasil.
Acho que a verdade sobre a
discriminação e preconceito contra essas pessoas deve ser exposta sem
camuflagem para toda a sociedade deste nosso país, justamente como o faz a
autora deste artigo. Parabéns Eliane Brum!
Não tenho dúvida que tornou-se muito urgente
despertar em nossa consciência o espírito de solidariedade e empatia para com todos
os povos indígenas, e apoiar com mais energia as soluções justas na defesa dos
seus diretos.
Para quem ainda não leu este texto,
aqui fica o meu convite.
WCejnóg
[Uma outra matéria sobre o mesmo caso, a regortagem Uma missa para o curumim degolado, de
Aline Torres também foi publicada aqui, no blog Indagações-Zapytania alguns
dias atrás (para visualizar clique aqui).]
1500, o ano que não terminou
Quem chorou por Vitor, o bebê indígena assassinado com uma lâmina
enfiada no pescoço?
4 Jan 2016.
Um menino de dois anos foi assassinado. Um homem afagou seu rosto. E enfiou uma lâmina no seu pescoço. O bebê
era um índio do
povo Kaingang. Seu nome era Vitor Pinto. Sua família, como outras da aldeia
onde ele vivia, havia chegado à cidade para vender artesanato pouco antes
do Natal. Ficariam
até o Carnaval. Abrigavam-se na estação rodoviária de Imbituba, no litoral de
Santa Catarina. Era lá que sua mãe o alimentava quando um homem perfurou sua
garganta. Era meio-dia de 30 de dezembro. O ano de 2015 estava bem perto do fim.
E o Brasil não parou para chorar o assassinato de uma
criança de dois anos. Os sinos não dobraram por Vitor. Sua morte sequer virou destaque na
imprensa nacional. Se fosse
meu filho, ou de qualquer mulher branca de classe média, assassinado nessas
circunstâncias, haveria manchetes, haveria especialistas analisando a
violência, haveria choro e haveria solidariedade. E talvez houvesse até velas e
flores no chão da estação rodoviária, como existiu para as vítimas de
terrorismo em Paris. Mas Vitor era um índio. Um bebê, mas indígena. Pequeno,
mas indígena. Vítima, mas indígena. Assassinado, mas indígena. Perfurado, mas
indígena. Esse “mas” é o assassino oculto. Esse “mas” é serial killer.
A fotografia
que ilustrou as poucas notícias sobre a morte do curumim mostra o chão de
cascalho e concreto da estação rodoviária. Um par de sandálias havaianas azul,
com motivos infantis. Uma garrafa pet, uma estrelinha de brinquedo, daquelas de
fazer molde na areia, uma tampa de plástico do que parece ser um baldinho de
criança, uma pequena embalagem em formato de tubo, um pano florido amontoado
junto à parede, talvez um lençol. É apresentada como “local do crime” ou como
“os pertences do menino”.
Essa foto é um documento histórico. Tanto pelo que nela está quanto pelo que nela não está. Nela permanece
o descartável, os objetos de plástico e de pet, os chinelos restados. Nela não
está aquele que foi apagado da vida. A ausência é o elemento principal do
retrato.
Os indígenas
só podem existir no Brasil como gravura. Apreciados como ilustração de um
passado superado, os primeiros habitantes dessa terra, com sua nudez e seus
cocares, uma coisa bonita para se pendurar em algumas paredes ou estampar
aqueles livros que decoram mesas de centro. Os indígenas têm lugar se estiverem
empalhados, ainda que em quadros. No presente, sua persistência em existir é
considerada inconveniente, de mau gosto. Há vários projetos tramitando no Congresso para escancarar suas terras para a exploração e o “progresso”. Há
muitos territórios indígenas devidamente reconhecidos que o governo de Dilma Rousseff (PT) não homologa porque neles quer construir
grandes obras ou porque teme ferir os interesses do agronegócio. Há uma
Fundação Nacional do Índio (Funai) em progressivo desmonte, tão fragilizada que
com frequência se revela também indecente. No passado, os índios são. No
presente, não podem ser.
Como diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, os indígenas são especialistas em fim de mundo, já que o mundo deles
acabou em 1500. Tiveram, porém, o desplante de sobreviver ao apocalipse
promovido pelos deuses europeus. Ainda que centenas de milhares tenham sido
exterminados, sobreviveram à extinção total. E porque sobreviveram continuam
sendo mortos. Quando não se consegue matá-los, a estratégia é convertê-los em
pobres nas periferias das cidades. Quando se tornam pobres urbanos, chamam-nos
de “índios falsos”. Ou “paraguaios”, em mais um preconceito com o país vizinho.
No passado,
os índios são alegoria. “Olha, meu filho, como eram valentes os primeiros
habitantes desta terra.” No presente, são “entraves ao desenvolvimento”. “Olha,
meu filho, como são feios, sujos e preguiçosos esses índios fajutos.” Os índios
precisam ser falsos porque suas terras são verdadeiras – e ricas.
Se Vitor era
um entrave, esse entrave foi removido. Por isso essa foto é um documento
histórico. Se houvesse alguma honestidade, é ela que deveria estar nas paredes.
Parece não
bastar que Vitor, um bebê de dois anos, passasse semanas no chão de uma
rodoviária porque a violência contra seu povo foi tanta e por tantos séculos e
ainda hoje continua que seus pais, Sônia e Arcelino, precisam deixar a aldeia
para vender artesanato. A preços baixos, porque desvalorizados são os artesãos.
É importante
perceber o nível de desamparo que leva alguém a considerar rodoviária um lugar
seguro e acolhedor. Terminais rodoviários são locais de passagem, e a família
de Vitor, assim como a de outros indígenas, abriga-se lá porque há movimento.
Rodoviária é lugar de ninguém. E por isso nela costumam caber os mendigos, os
meninos de rua, os bêbados, as putas, os loucos, os párias. E os índios. Ou
cabiam. E já não cabem mais.
Vitor já não
estraga nenhum cartão postal. Dele não há nem mesmo um rosto. A foto de sua
ausência não comoverá milhões pelo planeta como aconteceu com o menino sírio
trazido pelas ondas do mar. A morte dos curumins não muda nenhuma política.
Antes que me
acusem de precipitação, exagero ou injustiça, é preciso dizer: os “cidadãos de
bem” não querem que crianças indígenas tenham seus pescoços perfurados. De
jeito nenhum. Apenas que elas fiquem longe da vista. Em outro lugar em que não
contaminem, sujem ou enfeiem. Mas também não nas suas terras, se estas forem
ricas em minérios, férteis pra soja ou boa pra gado pastar. Aí também é abuso.
Desapareçam, apenas. Mas matar, não, matar é maldade.
2015 foi o
ano em que esse discurso deu ao Brasil o bicampeonato. O deputado estadual
Fernando Furtado, do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), foi reconhecido como
“Racista do Ano” pela organização Survival International por seu pronunciamento
antológico, ao se manifestar numa audiência pública: “Lá em Brasília, o Arnaldo
viu os índios tudo de camisetinha, tudo arrumadinho, com flechinha, tudo um
bando de viadinho, que tinha uns três que eram viado,
que eu tenho certeza, viado. Eu não sabia que tinha
índio viado, fui saber naquele dia em Brasília... Tudo viado. Então
é desse jeito que tá, como é que índio já consegue ser viado, boiola,
e não consegue trabalhar e produzir? Negativo!”.
O
parlamentar se referia aos Awá-Guajá, considerados um dos povos mais
vulneráveis do planeta. A conquista de Fernando Furtado, porém, não é inédita.
Outro parlamentar, Luis Carlos Heinze, este deputado federal pelo Partido
Progressista (PP) do Rio Grande do Sul, já tinha subido ao pódio em 2014, com a
seguinte declaração: “O governo... está aninhado com quilombolas, índios, gays
e lésbicas, tudo o que não presta”. Tudo indica que o Brasil é quase imbatível
para o tricampeonato. Fala-se tanto em país polarizado, mas a premiação prova
que os indígenas são um raro ponto de unanimidade entre certa direita e certa
esquerda dessa grande nação.
Vitor, o
bebê assassinado, vivia na aldeia Condá, no município de Chapecó, no oeste de
Santa Catarina. Os crimes cometidos pelo Estado contra o povo Kaingang da
região sul do Brasil estão registrados no Relatório Figueiredo, um documento histórico que se acreditava perdido e que foi descoberto
no final de 2012. O relatório, datado de 1968, documentou o tratamento dado aos
povos indígenas pelo extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI). No total, o
procurador Jáder Figueiredo Correia dedicou 7.000 páginas para contar o que sua
equipe viu e ouviu. Quem quiser compreender por que Vitor se abrigava no chão
da rodoviária de Imbituba em vez de passar os meses de verão seguro, saudável e
feliz na sua aldeia, tem uma rica fonte de informações no documento disponível
na internet. Vai descobrir, entre outras atrocidades, como antepassados de
Vitor chegaram a ser torturados e a viver em condições análogas à escravidão
para que suas terras fossem desmatadas e exploradas pelos não índios, em pleno
século 20. É possível que alguns destes “empreendedores” sejam avós daqueles
que hoje acham que indígenas como Vitor sujam o cartão postal de suas cidades.
Depois do
assassinato do bebê, a Polícia Militar prendeu o suspeito de sempre. Um rapaz
pobre, em liberdade provisória, com “uma pequena quantidade de maconha e
cocaína na mochila”. Como não havia nenhum indício contra ele, foi liberado. Em
seguida, foi preso outro jovem, hoje considerado o principal suspeito. A
polícia procurava alguém bastante genérico: com mochila e boné e tipo físico
semelhante ao que aparece num vídeo gravado por uma câmera de segurança. A suspeita de policiais militares
é de que o assassino estaria “incomodado com a presença dos indígenas no local”. A Polícia Civil mencionou como possíveis motivações “preconceito”,
“surto” e “problemas psicológicos”. Em nota, o CIMI afirmou: “O Conselho Indigenista Missionário manifesta preocupação com o clima
de intolerância que se propaga, na região sul do país, contra os povos
indígenas. Um racismo – às vezes velado, às vezes explícito – é difundido
através de meios de comunicação de massa e em redes sociais”.
Quem de fato
assassinou Vitor talvez seja investigado, julgado, condenado e punido, o que já
é uma raridade em mortes de indígenas no Brasil, marcadas pela impunidade. Mas
é preciso fazer perguntas mais complicadas. Quem armou essa mão? Que
encruzilhada histórica permitiu que Vitor fosse o bebê escolhido pelo
assassino, independentemente de sua sanidade ou insanidade – e não o meu filho
ou o seu? Onde estamos nós nesta foto em que estamos sem estar?
Tem se dito
que 2015, um ano de crise no Brasil e horror em todas as partes, é o ano que
não terminou. 2016 seria apenas um looping. Faz sentido. Na véspera deste
Natal, Antônio Isídio Pereira da Silva, líder rural e ambientalista no
Maranhão, foi encontrado morto. Era mais um assassinato anunciado. Há um ano foi arquivado o pedido
de inclusão do agricultor no programa federal de proteção aos defensores de
direitos humanos. Ele se preparava para denunciar mais um
desmatamento ilegal numa região com graves conflitos de terra quando foi
assassinado. Também no Natal, cinco jovens
denunciaram policiais militares do Rio por tortura e roubo. Segundo seu relato, eles voltavam em três motos de uma festa quando
foram detidos por PMs da Unidade de Polícia Pacificadora de Coroa, Fallet e
Fogueteiro. Além de torturas com faca quente, isqueiro e socos, um deles teria
sido obrigado a fazer sexo oral no amigo. Em São Paulo, levou apenas dois
dias para ocorrer a primeira chacina de 2016, com quatro mortos na periferia de
Guarulhos. Suspeita-se de vingança pela morte de um PM dias
antes na região.
Começamos
como acabamos. Nada, portanto, nem começou nem acabou. Quem continua morrendo
de assassinato no Brasil, em sua maioria, são os negros, os pobres e os índios.
O genocídio segue diante da indiferença, quando não aplauso, do que se chama de
sociedade brasileira. Começamos 2016 como acabamos 2015. Obscenos. Os fogos do
Ano-Novo já fracassam no artifício. Estamos nus. E nossa imagem é horrenda. Ela
suja de sangue o pequeno corpo de Vitor por quem tão poucos choraram.
Dizem que
2015 é o ano que não acaba. Ou que 2013 é que não chega ao fim.
Para os
indígenas é muito mais brutal: o ano de 1500 ainda não terminou.
____________
* Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não
ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O
Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do
romance Uma Duas.