Será que a sociedade brasileira, em sua
maioria, conhece mesmo os principais e mais perversos mecanismos que movem a
economia deste nosso grande país? Será
que entendemos as causas da ‘eterna’ questão de dívidas e mais dívidas (dívida externa,
mas, sobretudo, interna), que estão
crescendo cada vez mais e são apresentadas ao povo em forma de ‘contas’ que ele
deve pagar? Até quando isso vai continuar? Estas são algumas indagações muito
importantes e é preciso que se fale mais e com maior clareza possível sobre isso.
Uma boa ajuda em analisar a questão
contida nas perguntas acima é o artigo O que o Brasil não deve, mas
paga, e o que deve e não paga. de
Jacques Távora Alfonsin, que hoje trago para o blog Indagações-Zapytania. O texto foi
publicado no site do Instituto Humanitas Unisinos (IHU).
Vale a pena ler!
WCejnóg
IHU - Notícias
Sexta, 08 de janeiro de
2016
O que o Brasil não deve, mas
paga, e o que deve e não paga
"Perto do que se
tem dito e ouvido sobre operações da policia Federal para investigar e punir corruptores
e corruptos – Operação Zelotes e Lava Jato – a desenvoltura dessa
técnica da Receita Federal em lidar com aqueles dados complexos, ligados ao
mundo financeiro, misteriosos para a maioria do povo, por ela colocados em
linguagem acessível à maioria, revela uma gigantesca, continuada e
injustificável sangria do nosso dinheiro, para pagar o que não devemos, e bem
superior ao volume de dinheiro cobrado naquelas investigações", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do Rio
Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Eis o artigo.
A entrevista concedida
por Maria Lucia Fattorelli para a revista Caros Amigos de
novembro do ano passado, precisaria ser relida por qualquer brasileira/o, no
início deste novo ano, para reconhecer, se indignar e tomar posição ativa
contra o que ela identificou como “Opressão financeira: Crise, escândalos
mediáticos e financiamento de campanha engordam o sistema da dívida às custas
do povo.”
Perto do que se tem dito
e ouvido sobre operações da policia Federal para investigar e punir corruptores
e corruptos – Operação Zelotes e Lava Jato – a
desenvoltura dessa técnica da Receita Federal em lidar com aqueles dados
complexos, ligados ao mundo financeiro, misteriosos para a maioria do povo, por
ela colocados em linguagem acessível à maioria, revela uma gigantesca,
continuada e injustificável sangria do nosso dinheiro, para pagar o que não
devemos, e bem superior ao volume de dinheiro cobrado naquelas investigações.
A partir de um exemplo
muito frequente em matéria de política destinada a custear um direito social
como é o da educação, Maria formula a hipótese de um/a
administrador/a público/a poder decidir: “Nós vamos fazer uma emissão especial
de títulos, e só os cidadãos e empresas brasileiras podem comprar e a
remuneração vai ser poupança. Isso é uma dívida, uma dívida interna
supertransparente, legítima, porque vamos ter que pagar, mas tem contrapartida.
O que a gente critica é essa dívida que não tem contrapartida, que você não
sabe quem se beneficiou, onde foi aplicado o dinheiro, quanto custou. Como que
a gente chegou numa dívida interna hoje de 3 trilhões 892 bilhões?”
Quem se beneficiou, do
pagamento de uma dívida sem contrapartida? “Aqui no Brasil, a informação de
quem são os detentores dos títulos é considerada sigilosa”, refere a
entrevistada, coisa que não acontece nem nos Estados Unidos, “que são o berço
do liberalismo.” Se nós, entretanto, o povo dito soberano não sabemos, o FMI sabe,
mostra ela, mesmo depois que Antonio Palocci, então ministro da
Fazenda fez a comunicação pública de a nossa dívida com o FMI, ter sido
quitada. Por sinal, com vantagem escandalosamente danosa ao país e favorável
aos bancos: “nós trocamos uma dívida em dólares com o FMI, moeda cujo valor
estava caindo, se tivesse esperado até 2007, quando a dívida venceu, seria
US$1,50, e pagamos US$2,80; e para pagar, emitimos títulos da dívida interna em
reais a 19% de juros. A dívida mudou de mão, deixamos de dever ao FMI a 4% e
passamos a dever aos bancos que compraram os títulos da dívida a 19%.”
Se os bancos foram os
beneficiários desse incrível mau negócio, Fattofelli vai
mostrando em quantos casos semelhantes o Brasil vem embarcando, pagando mal ou,
até, o que não deve, em prejuízo direto do seu povo. Num raro exemplo do
passado contra esse despropósito, recorda ela uma simples providência tomada
por Getulio Vargas, em 1931. Estranhando porque assinava tantos
papéis de remessas de dinheiro para o exterior, reclamou: “o que tanto eu
assino, eu quero saber”. “E quando ele pediu os contratos, sem querer,
determinou uma auditoria. O que é uma auditoria? É você analisar, investigar os
documentos que respaldam aquela dívida, checar. Para resumir, apenas 40% da
dívida estava documentada, não existia controle das remessas e nem
contabilidade da dívida, era tudo feito lá fora. Com essa revisão, ele reduziu
à metade, tanto o estoque da dívida, como o fluxo de pagamento.”
É preciso lembrar que,
ainda em 1988 (!), quando a nossa Constituição entrou em vigor, o artigo 26 do
Ato de suas Disposições Transitórias fixava em um ano o prazo para uma comissão
parlamentar de inquérito, com o auxílio do Tribunal de Contas da União fazer “o
exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo
brasileiro” e, no caso de ser apurada alguma irregularidade, propor ao Poder
Executivo “a declaração de nulidade do ato”, encaminhando o processo ao
“Ministério Público Federal que tomará, no prazo de sessenta dias, a ação
cabível.”
Que razões jurídicas
subsistem até hoje, para o relatório dessa auditoria, instalada em 1989,
obedecendo o disposto neste artigo 26 da ADCT, mesmo com efeitos
distantes dos seus objetivos, ter sido totalmente ignorado? Em artigo
disponível na internet desde 2013, Jarbas Ricardo Almeida Cunha,
especialista em Direito Sanitário da Fiocruz, escreveu sobre “A Auditoria
Constitucional da Dívida e o Financiamento do Direito à Saúde no Brasil nos 25
anos da Constituição Brasileira”, dando resposta a essa pergunta: “Segundo a
Auditoria Cidadã da Dívida, o relatório parcial foi aprovado em 09 de agosto de
1989 e continha as seguintes conclusões: inconstitucionalidade dos novos
contratos da dívida já que não eram submetidos ao Senado Federal, cláusulas
abusivas, renegociação de dívidas prescritas, entre outras. Apesar da aprovação
do relatório parcial, o parecer final que ratificava as irregularidades
constatadas não foi votado por causa do lobby da bancada conservadora do
Congresso Nacional, inviabilizando, dessa forma, a aplicação constitucional de
auditoria da dívida.”
Inconstitucionalidade de
contratos, cláusulas abusivas, renegociação de dívidas prescritas, a
superioridade de poder do capital financeiro, circulando a socapa nos Bancos,
sobre o Estado e as leis, confere aí mais uma prova da sordidez com que age em
prejuízo do país e do seu povo. Comparando-se o estudo desse autor com o
diagnóstico da Maria Lucia Fattorelli, é forçoso reconhecer-se quão
urgente e necessária é uma mudança completa de comportamento do Poder Público
sobre o dinheiro que administra, do povo e para o povo: “O objetivo do nosso modelo econômico não é garantir uma vida digna para
o brasileiro, não é buscar o pleno emprego, não é viver o que nós somos na
realidade, porque nós somos, na realidade, um país abundante.” Contrariando
os remédios externos, do tipo dos aconselhados pelo FMI, juros
altos e ajustes, como única saída anti inflacionária, Maria Fattorelli afirma:
“Não é difícil sair disso. O que tem é primeiro convencer as pessoas do
seguinte: a nossa realidade é outra. Nós temos que sair desse cenário de
miséria e escassez, nosso país é um país de abundância, porque vamos fazer esse
sacrifício? E entender que os mecanismos
que foram criados foi para nos jogarem nessa situação. Um dos principais é
a dívida pública, que leva quase a metade dos recursos e cria dívida a partir
de mecanismos meramente financeiros como o mercado aberto, que não tem a ver
com nenhum investimento no País” ...
Para que esse dinheiro
todo tenha melhor destino e cubra o custo das políticas públicas garantes dos
direitos sociais, uma iniciativa judicial da Ordem dos Advogados do Brasil pode
ser fundamental. Ajuizou uma ADPF (Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental), no Supremo Tribunal Federal, ainda em 2004(!),
visando garantir os efeitos daquele artigo 26 do ADCT da
Constituição Federal. Ela tem o número 59 e se encontra, desde agosto do ano
passado, nas mãos do relator, ministro Luis Roberto Barroso, que
substitui o antigo relator, agora aposentado, Carlos Ayres Brito.
Parece hora de essa
verdadeira nova “comissão da verdade”, como a que trabalhou sobre os desmandos
da ditadura, começar a agir. Entidades que defendem direitos humanos fundamentais
sociais, por exemplo, poderiam se habilitar como “amici curiae” nessa ADPF tramitando
no Supremo para, juntamente com a OAB, agilizar o julgamento dessa
arguição e o Brasil não prosseguir vítima das “tenebrosas transações”
denunciadas por Chico Buarque na composição que embalou o
entusiasmo dos primeiros anos da nossa frágil democracia. O país não pode
continuar pagando o que não deve em prejuízo do que deve e não paga.
Fonte: IHU - Notícias
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