A reportagem Uma missa para o curumim degolado, de Aline
Torres, aborda o assunto de discriminação e de violência que a população
indígena no Brasil ainda hoje continua sofrendo. O caso do menino indígena Vitor
Pinto, assassinado cruelmente e de forma tão absurda quando estava nos braços
da sua mãe, à luz do dia e numa área pública, chocou muitas pessoas e levantou
o grito de protesto de algumas entidades e algumas parcelas da nossa sociedade.
O assassinato foi cometido no dia 30/12/2015.
Sabemos,
porém, que este é apenas mais um crime entre outros tantos que continuam
acontecendo dia-a-dia neste vasto território do Brasil.
Penso que o drama, o sofrimento e a dor de muitos povos indígenas na verdade é o seu forte grito por seus direitos e pela justiça, que a sociedade toda precisa ouvir. O Brasil não pode mais ficar surdo perante esse grito!
A
reportagem abaixo também é muito esclarecedora e nas suas entrelinhas convida a
todos nós para uma reflexão séria sobre o assunto.
Não
deixe de ler!
WCejnóg
Celebração
por Vitor, bebê Kaigang assassinado em Santa Catarina, se torna caravana por
respostas na delegacia onde suspeito está preso.
Por ALINE TORRES
Imbituba (Santa Catarina)
7 jan 2016.
Uma missa para o curumim degolado
Meia hora antes do horário previsto para a
missa, duas beatas bufavam impacientes pela demora do padre. A poucos metros
dali o indiozinho Kaigang, Vitor Pinto, 2 anos, foi degolado. No sétimo dia
depois do crime do penúltimo dia de 2015 (30/12/2015), a comunidade cristã
resolveu homenageá-lo. No chão não havia flor ou vela, mas sangue. As beatas
venceram o tédio percorrendo as marcas. Os sinais estão lá, sob a sombra da
castanheira, em frente a rodoviária da cidade portuária de Imbituba, no sul de Santa Catarina. Dois bêbados que não sabiam do
caso se uniram a elas. Aos poucos as pessoas surgiram, mais de cem. Meio-dia em
ponto começou a missa. No mesmo horário que Vitor teve a garganta cortada, após ter os
cabelos afagados pelo assassino.
Inscrição em calçada lembra morte de criança
indígena.
Foto: CIMI
Concluído o Pai Nosso, o padre Luciano dos Santos pediu licença para
complementar a oração do Papa
Francisco: “Digamos juntos, de coração: nenhuma família sem
casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhuma
pessoa sem a dignidade que o trabalho dá”, e acrescentou “nenhuma etnia
indígena sem suas terras demarcadas”.
Quando se discute no Congresso mudanças
que podem pôr em xeque a demarcação de terras indígenas no Brasil, o padre recebeu aplausos tímidos dos Guarani, que vieram de aldeias próximas,
solidários ao ato.
— Esse padre é índio, né?, perguntou uma
mulher.
Foi aberto espaço. A cacique Guarani Kerexu Ixapyry, 35 anos, viajou 93 km para
falar.
— Eu temia por esse momento. Os indígenas são
vítimas da violência em todo o Brasil.
Mas é preciso a tragédia para que nos ouçam. Somos tratados piores que animais.
No Mato
Grosso do Sul nosso
povo está sendo exterminado. Em Santa
Catarina somos
vítimas de ameaças”, disse a líder, há quatro anos jurada de morte.
Os Guarani entoaram um canto a Nhanderú, deus solar, pela alma do curumim. O
padre encerrou seu discurso pedindo aos fiéis que “vençam as diferenças”.
“Basta de perseguição”, bradou. Em seguida fez a comunidade repetir três vezes
uma expressão: “Somos paz”. Nesse momento, ativistas grafitavam no chão "Vitor
Kaingang vive em
nós".
Em busca do motivo
Antes que a população se dispersasse, Marina Oliveira, representante do CIMI (Conselho
Indigenista Brasileiro), braço da Igreja
Católica que
milita na causa indígena, fez uma convocatória para irem à delegacia. Foram
todos com intuito de entender o “real motivo” do assassino de Vitor.
Dia de 2015 (30/12/2015), a comunidade cristã
resolveu homenageá-lo. No chão não havia flor ou vela, mas sangue. As beatas
venceram o tédio percorrendo as marcas. Os sinais estão lá, sob a sombra da
castanheira, em frente a rodoviária da cidade portuária de Imbituba, no sul de Santa Catarina. Dois bêbados que não sabiam do
caso se uniram a elas. Aos poucos as pessoas surgiram, mais de cem. Meio-dia em
ponto começou a missa. No mesmo horário que Vitor teve a garganta cortada, após ter os
cabelos afagados pelo assassino.
Oração pelo menino.
Foto: CIMI
O delegado Rafael
Giordani foi
cravejado pela curiosidade. No início calmo e depois irritado, ele foi
respondendo cada questão. Até que um homem perguntou se a mãe de Vitor tinha
reconhecido o suposto criminoso. O delegado disse que não. Mas a mulher, de
longos cabelos pretos e voz trêmula, o interrompeu aos gritos: “É sim. É o
menino que matou meu filho. Por que vocês querem soltar ele?”.
Era Sônia.
Aos 27 anos, mãe de dois filhos, a indígena é a imagem do abandono. Vestia um
camisetão rosa, saia azul comprida e havaianas verdes menores que os seus pés.
A dor dos últimos dias causou tiques nervosos. As pálpebras e maçãs do rosto
tremiam. Na pele há inúmeras feridas e alergias, o olho esquerdo não abre, e
apesar de medir 1,5 metro, pesa mais de 80 quilos. O pai de Vitor, Arcelino, 42 anos, ao contrário, tem pinta de pastor. Vestia sapatos pretos fechados,
calça social cinza e camisa azul de mangas compridas. O casal é evangélico,
apesar de adorarTupã, deus do Trovão. O sincretismo religioso
permitiu a sobrevivência dos Kaingang.
A família chegou atrasada, após 12 horas de
viagem deChapecó, no Oeste catarinense, até Imbituba. Vieram os pais do indiozinho e as
lideranças da aldeia Condá,
onde vivem, e onde Vitor foi enterrado. Como o umbigo
tradicionalmente jogado no solo após o nascimento, o curumim voltou ao ventre
da Mãe
Terra.
Surpreso com a presença da família, o
delegado passou a responder somente aos indígenas. A plateia ora vaiava, ora se
excitava. “Se um indígena cortasse a garganta de uma criança branca o Brasil viria
abaixo. Quero a mesma indignação pela morte do meu filho”, justificou Sônia.
Com o clamor, o delegado transformou o
espetáculo em conversa privada. Na salinha da delegacia, Sônia e Arcelinoreconheceram os objetos encontrados com Matheus de Ávila Silveira, 23 anos. A mochila, a
camiseta, os tênis e as luvas azuis e brancas. O jovem foi preso no 1° dia do
ano e aguarda a conclusão do inquérito policial, que levará 30 dias, na Unidade Prisional Avançada de Imbituba, em
isolamento. O delegado não tem dúvida sobre a autoria do crime e descreve o
autor como “frio e debochado”.
Apesar dessa definição, agentes prisionais
contam que Matheus arranca a própria pele, é nervoso. A
autoflagelação também ocorria na delegacia de polícia, onde tentou suicídio por
asfixia engolindo a espuma do colchão.
O rapaz integrava um grupo de satanistas.
Segundo seu amigo Ramon,
eram mal vistos na cidade praiana por gostarem de preto e fumarem maconha na
praça. Na página do Facebook, Moxa
Zombie postava
imagens macabras e frases como Nictofilia “qualidade daquele que encontra
conforto na escuridão”. No entanto, seu maior culto era às drogas. Não várias
publicações exaltando pirações e bebedeiras. Como no dia que conta aos amigos
“bebi tanto que mijei toda minha legging”. Apesar do perfil, Matheus não
levantou suspeita.
O ataque
Sônia alimentava o indiozinho com colheradas de
arroz – era apenas o que tinha naquele momento – quando viu um rapaz “simpático
se aproximar”. “Ele veio calmamente. Era bem vestido, classe média. Afagou os
cabelos do piá, sorriu. Quando ele olhou para cima para ver quem o tocava
aconteceu o pior”, disse Sônia.
Pais de menino degolado mostram cartaz.
Foto: CIMI
Segundo Ronaldo
Campos, 33 anos, dono da lanchonete da rodoviária, Matheus “pernoitou
em um dos bancos no dia anterior e parecia inofensivo”. FoiRonaldo e a auxiliar de limpeza, Marize, que estancaram o sangue do pescoço de Vitor enquanto
a índia gritava por ajuda. “Não durou dois minutos. Se tivesse uma paramédico
ao lado ele não teria sobrevivido, tamanha foi a violência”, disse Ronaldo.
O comerciante atendeu Vitor e
sua família desde o dia que desembarcaram no município. “O menininho vinha a
tarde inteira com o irmão mais velho, Jessé,
buscar doces e geladinhos. Parecia uma formiguinha carregadeira”, contou.
Arcelino trabalhava em outra praia. Comia um salgado
frito com refrigerante em um boteco quando ouviu na televisão “um índio foi
morto na rodoviária de Imbituba”.
Quando chegou no local do crime, viu os chinelos e brinquedos de Vitor espalhados no chão. Sônia não estava, eram quase 18h.
Antes de chegar à delegacia viu a mulher
vagando de um lado para o outro, sozinha, na chuva. Ali soube o destino do seu
"nenê": “Foi morto por um branco”, disse a mãe. Na rodoviária, sem
abrigo ou apoio, permaneceram até a manhã seguinte.
Para o delegado, não se trata de crime
étnico. Os Kaingang discordam. “Esse menino não é louco. Se fosse,
teria matado o primeiro que viu pela frente. Ele escolheu o Vitor, um bebê, no colo de uma indígena. Escolheu
porque eram vulneráveis, assim são os índios do Brasil ”,
disse a vice-cacique da Condá, Márcia Rodrigues.
Fonte: El País
Nenhum comentário:
Postar um comentário