"A história vai nos pedir contas dessa catástrofe humanitária que não conseguimos ou não queremos impedir. Porque, no Iraque como na Síria, não está em risco apenas a sobrevivência de uma comunidade cristã presente na região desde os primeiríssimos séculos: está em risco a humanidade entendida como capacidade de se sentir e de ser responsável pelo seu próprio semelhante..." .
Abaixo, um artigo muito expressivo e importante do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, em relação à atual situação muito grave das comunidades cristãs no Iraque e na Síria.
Sabemos que o Ocidente, praticamente
inérte, está ‘assistindo’ às atrocidades e guerra naquela região (ou apenas participando
delas como ‘mercenários modernos’). O mesmo está acontecendo em outras regiões
do mundo (África, Palestina, Ucrânia!). E o que se faz? – Nada, ou quase nada!
Devemo-nos
indagar: A quem isso interessa? Por que hoje não se procura urgentemente por
soluções pacíficas e definitivas? Qual é
a razão dessa postura passíva, acomodada e egoísta das sociedades de consumo
ocidentais diante desse mar de sofrimento e dor humana nos tempos de hoje? E mais: Por que esse silêncio absurdo dos ‘justos’?
...
Considero
este texto (abaixo) um verdadeiro apelo à consciência do ser humano nos dias de
hoje, especialmente à consciência das sociedades ocidentais, e, sobretudo,
apelo à consciência dos cristãos!!! Textos como este são as vozes dos profetas
de Deus no mundo de hoje. Precisam ser divulgadas, ouvidas e correspondidas! E isso - com muita urgência!
O
artigo foi publicado recentemente também no site do Instituto Humanitas
Unisinos (IHU). Não deixe de ler!
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IHU
- Notícias
Segunda, 11 de agosto de
2014
O nosso silêncio culpado. Artigo de Enzo Bianchi.
"No Iraque
como na Síria, não está em risco apenas a sobrevivência de uma
comunidade cristã presente na região desde os primeiríssimos séculos: está em
risco a humanidade entendida como capacidade de se sentir e de ser responsável
pelo seu próprio semelhante; está em risco aquele dote humano de expressar
sentimentos e questões morais que chamamos de cultura; está em risco o
patrimônio ético da convivência, do diálogo, do debate para enfrentarmos juntos
o duro trabalho do viver; está em risco a própria relação com a criação",
escreve o monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade
de Bose, em artigo publicado no jornal La Stampa, 08-08-2014.
A tradução é de Moisés
Sbardelotto.
Eis o texto.
"Aqui em Qaraqosh
as pessoas têm muito medo: se os fundamentalistas entrarem aqui, vai ser um
caos, uma tragédia gravíssima." Assim, no dia 21 de julho, nos escrevia Wisam,
monge iraquiano que foi várias vezes hóspede da nossa Comunidade em Bose,
junto com seus dois coirmãos.
A última mensagem que
ele nos mandou estava datada de 2 de agosto e continha os votos para a festa da
Transfiguração: "Esperamos que também seja a Transfiguração do Iraque
que está sofrendo muito".
Nestas horas, Wisam
e os seus irmãos também estão entre as dezenas de milhares de refugiados cristãos
em fuga para um lugar que não existe. A história dessa pequena comunidade
monástica é emblemática da tragédia que os cristãos estão vivendo naquelas
terras: em 2005, o carro em que dois deles, então estudantes universitários de Bagdá,
estavam viajando para ir a uma cerimônia de casamento foi atingida por um
projétil disparado de um carro blindado norte-americano.
Um deles morreu, o outro
sairia do estado de coma depois de alguns meses: desde então, ele se move com
duas pernas artificiais, e não ouso imaginá-lo hoje em fuga apressada.
De Bagdá, depois,
se deslocaram para a planície de Nínive, onde parecia que os cristãos
podiam encontrar maior proteção: lá, levavam a sua vida monástica alternando a
oração da noite com o trabalho de manutenção das estradas e de coleta de
detritos e resíduos para se sustentarem e para ajudar as pessoas que estavam
ainda mais em dificuldade do que eles.
Tudo isso até ontem.
Depois, eles também devem ter acabado engolidos no rio de sofrimentos que está
varrendo os cristãos daquela região martirizada. O Papa Francisco, e com
ele bispos e patriarcas daquelas terras, não perdem uma oportunidade para
chamar a atenção, exortar, admoestar, invocar gestos e ações dignas do ser
humano: mas a situação só piora.
Os órgãos internacionais
estão paralisados, a política externa europeia é inexistente, o Parlamento
italiano está comprometido ao extremo para reformar a si mesmo, as urgências de
cada um de nós são outras, da crise econômica e ocupacional à organização das
"merecidas" férias... e assim dezenas de milhares de pessoas
abandonam as suas casas sem levar nada consigo, centenas são mortas, os mais
vulneráveis – idosos, doentes, crianças – morrem pelas insustentáveis fadigas
de uma viagem sem esperança.
Os cristãos são as
primeiras vítimas dessas atrocidades, e a sua perseverança na fé dos pais é
motivo de ostracismo e de condenação, mas, junto com eles, também são atingidos
os seus vizinhos muçulmanos.
Voltam à mente aqui as
palavras do testamento do frei Christian, sequestrado e morto com os seus irmãos na Argélia:
"Seria um preço caro demais para aquela que, talvez, chamaríamos de 'graça
do martírio', devê-la a um argelino, qualquer que seja, especialmente se ele
disser que está agindo em fidelidade ao que crê ser o Islã. Eu sei o desprezo
que foi empilhado sobre os argelinos globalmente. Sei também as caricaturas do
Islã que um certo islamismo encoraja. É fácil demais ter a consciência
tranquila, identificando essa forma religiosa com os integrismos dos seus
extremistas".
São palavras que eu ouvi
serem aplicadas por Wisam à situação iraquiana e aos muçulmanos da sua
terra e que, em seu nome, sinto que devo reafirmar ainda hoje.
Certamente, o
desencorajamento, o sentimento de impotência, o instinto de remoção para vencer
a angústia, a impossibilidade de assumir sobre as nossas próprias costas todas
as misérias do mundo nos freiam, mas o que ainda tem que acontecer para que as
nossas consciências sejam sacudidas e para que quem tem o poder faça algo para
frear o massacre?
A história vai nos pedir
contas dessa catástrofe humanitária que não conseguimos ou não queremos
impedir. Porque, no Iraque como na Síria, não está em risco
apenas a sobrevivência de uma comunidade cristã presente na região desde os
primeiríssimos séculos: está em risco a humanidade entendida como capacidade de
se sentir e de ser responsável pelo seu próprio semelhante; está em risco
aquele dote humano de expressar sentimentos e questões morais que chamamos de
cultura; está em risco o patrimônio ético da convivência, do diálogo, do debate
para enfrentarmos juntos o duro trabalho do viver; está em risco a própria
relação com a criação.
Na tragédia iraquiana,
está em jogo a nossa resposta à lancinante interrogação posta por Primo Levi
há 70 anos: perguntamo-nos "se isto é um homem", se somos seres
humanos, nós que nos acostumamos a acompanhar esses eventos protegidos por uma
tela, sempre prontos para mudar de canal, se são dignos da autoridade e do
poder a eles conferido aqueles que fecham os olhos e pensam em outra coisa ou,
pior ainda, que engenhosamente encontram oportunidades de ganhar com as
catástrofes que se abatem sobre os outros.
Perguntemo-nos que
crescimento econômico é esse alimentado pelos mercadores de armas e pelos
aproveitadores de todos os tipos; que diplomacia é essa que só se preocupa com
equilibrismos, com não ingerência, com respeito de zonas de influência; que
política é essa que perdeu o sentido da polis e do mundo como espaço comum.
Se não agora, quando é
que vamos nos decidir a trabalhar com resoluta paciência por um desarmamento
das mentes, dos corações, dos braços? Quando nos lembraremos de que quem
pronunciou a terrível frase "Por acaso eu sou o guarda do meu irmão?"
era, na realidade, o seu assassino?
Fonte: IHU - Notícias
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