“Não haverá paz entre as nações, se não existir paz
entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões, se não existir diálogo
entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões, se não existirem
padrões éticos globais. Nosso planeta não irá sobreviver se não houver um ethos
global, uma ética para o mundo inteiro” (Hans KÜNG).
Hoje
trago para o blog Indagações-Zapytania um excelente artigo, muito atual e
oportuno para o tempo presente, do nosso ilustre colega e professor José Lisboa
Moreira de Oliveira, que fala sobre a questão de conflitos sangrentos e guerras, que sempre existiam mas também têm
lugar nos dias de hoje em pleno século XXI (Israel promovendo um verdadeiro
genocídio contra os Palestinos na região de Gaza, a guerra sangrenta no Iraque,
entre outros), cujas raízes e causas derivam das diferenças e motivações
religiosas.
Considero
muito acertadas todas as colocações do autor sobre o tema e penso que textos
como este deveriam ser divulgados aplamente, para que mais pessoas
pudessem conhecer a verdade, refletir, analisar e poder construir uma
consciência responsável e justa.
O
autor publicou esse artigo no fim do mês passado (julho de 2014) no seu blog O
Chamado.
Não
deixe de ler!
WCejnóg
Blog O
Chamado
Quarta-feira,
30 de julho de 2014.
Quando as religiões matam
José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e
professor universitário
Segundo dados da ONU, em 2013
existiam no mundo oitenta (80) conflitos ou guerras. Destes, setenta e dois
(72), ou seja, noventa por cento (90%) tinham motivações religiosas. Ficava,
assim, evidente que em pleno século XXI as religiões continuam matando. Aquilo
que deveria religar as pessoas entre elas, e estas com a
divindade, continua sendo a raiz de divisões, de ódio, de violência e de
massacre.
Isso é profundamente lamentável e
triste. Depois de tantos milênios, de experiências dramáticas, mas também de
avanços no conhecimento, de contribuições significativas das diferentes
ciências, as religiões não conseguem avançar e dar uma contribuição efetiva
para a paz mundial. Elas continuam paralisadas, inertes, impotentes, ou, pior,
incentivando a violência e o ódio entre as pessoas e os povos.
O que leva a isso? Por que as
religiões não só não conseguem contribuir para a paz, mas chegam a estar na
raiz da quase totalidade dos conflitos mundiais? Acredito que, antes de tudo, a
razão disso está na incapacidade das religiões de avançarem na hermenêutica de
sua história e de seus textos sagrados. Não só as pessoas simples que compõem
as religiões, mas, acima de tudo, suas lideranças continuam lendo a própria
história e as suas escrituras sagradas de uma forma totalmente fundamentalista.
Fazem uma leitura literal dessas realidades, como se o divino, de forma mágica,
tivesse determinado diretamente e oralmente o decorrer de sua história e cada
palavra dos textos sagrados.
Além disso, as próprias lideranças
não têm nenhum interesse em educar as pessoas para uma correta compreensão da
história da própria religião e das escrituras sagradas. Tais lideranças, na sua
maioria absoluta, sabem que a história de uma religiosidade e os textos
sagrados não podem ser lidos ao pé da letra. Sabem que na construção de uma
história sagrada e na elaboração de um texto religioso entraram muitos fatores
ideológicos, sociológicos, políticos e psicológicos.
Pense-se, por exemplo, na
constituição do povo de Israel a partir da história do Êxodo. Qualquer pessoa
que tenha estudado, mesmo que minimamente, essa questão sabe que a formação do
povo hebreu não se deu exatamente como está narrado na redação final do
Primeiro Testamento. Moisés não foi um mágico que foi tocando o povo com uma
varinha de condão, rachando o mar Vermelho em duas partes, furando uma rocha
para sair água, fazendo codornizes pousarem suavemente na frente dos hebreus. A
coisa foi muito mais complexa e muito mais humana do que
divina.
Quem estudou um pouquinho da história
da constituição do povo de Israel sabe que a redação final dos textos bíblicos,
que falam do assunto, sofreu profunda modificação no período da monarquia, com
o objetivo de justificar as mazelas praticadas pelos reis e pelo sistema
dominante imposto por eles. Assim sendo, a Bíblia judaico-cristã não
pode ser lida de forma fundamentalista, mas somente com a colaboração de uma
profunda e sadia hermenêutica que nos ajude a destrinchar o que se encontra por
trás da constituição desses textos. Porém, as lideranças religiosas se recusam
a ajudar o povo a tomar conhecimento disso, uma vez que uma interpretação
mágica dos textos sagrados serve à manutenção dos status quo e para a manipulação
do próprio povo. E o que foi dito aqui sobre o caso da história do povo hebreu
e da religião hebraica, nas devidas proporções, vale para todas as outras.
Todas as religiões, sem exceção alguma, devem ser responsabilizadas pelo sangue
inocente que hoje escorre no mundo, quando se recusam a rever o modo de
interpretar a própria história e as próprias escrituras sagradas.
Neste instante veio em minha mente as
chocantes imagens dos corpos dilacerados, ensangüentados, carbonizados dos
palestinos vítimas da truculência dos dirigentes do Estado de Israel, de modo
particular os corpos de crianças, as quais nada têm a ver com o que está
acontecendo. O modo de agir do estado israelense pode ser comparado aos
horrores praticados contra os hebreus em vários períodos da história,
especialmente pelo nazismo. Os atuais dirigentes de Israel parecem esquecer a
própria história. Qualquer mente sã e humana não pode ficar indiferente diante
da forma brutal com a qual este país age em relação ao povo palestino. A necessária
convivência pacífica entre os povos daquela região não pode ser construída com
a prática da violência brutal e desumana.
Diante do que está acontecendo no
Oriente Médio e em tantas outras partes do mundo, as religiões devem ser não só
interpeladas, mas profundamente questionadas e até responsabilizadas. É nosso
dever dizer para todas as religiões, sem exceção, que elas precisam
urgentemente educar os povos para a paz. E educar não quer dizer apenas fazer
apelos genéricos, como fez recentemente o papa Francisco. Os apelos genéricos
são bonitos, mas, se ficam apenas nisso, não servem para nada. As religiões, de
modo particular seus dirigentes, precisam mudar suas práticas. Aquelas práticas
que estimulam o ódio, a divisão, a competição e até mesmo a guerra santa. Todas
as religiões precisam recuperar seus princípios éticos originais, nos quais é
possível encontrar os fundamentos para a paz e a convivência pacífica entre as
pessoas e os povos.
Hoje todas as pessoas aspiram à paz,
mesmo que, às vezes, sejam a favor e até promovam a guerra. A paz não
é só ausência de guerra, mas a presença de todos os bens indispensáveis a uma
vida digna e humana e a eliminação de toda forma de preconceito e de
discriminação. Diante disso, a tarefa da religião é revisitar as próprias
tradições e as suas afirmações básicas para descobrir aí um grande potencial em
favor da paz, de modo que isso sirva de referencial para esse anseio da
humanidade.
Tarefa da religião, aqui neste caso,
é voltar-se para o seu próprio patrimônio, ajudando a encontrar nele elementos
que ajudem a romper com todas as formas de guerra e incentivem seus adeptos a
participar ativamente dos processos de construção da paz. Existe um consenso
inter-religioso acerca da potencialidade positiva e qualitativa de todas as
religiões para a paz. Por isso, como já afirmara Hans Küng, não haverá paz no
mundo sem paz religiosa. Para que haja paz, todas as religiões precisarão
retornar de forma crítica às suas tradições não só para descobrir suas
potencialidades em favor da paz, mas também para rever com humildade e
transparência os momentos em que estiveram apoiando e sustentando destruições e
violências.
De fato, como afirmou a Cúpula do
Milênio que, em 2004, reuniu líderes representantes das grandes religiões na sede
das Nações Unidas, as religiões têm contribuído para a paz no mundo, mas também
têm sido usadas para criar divisões e alimentar hostilidades. Por essa razão,
acreditam os líderes religiosos reunidos na Cúpula Mundial, as religiões
precisam ter uma atitude de reverência à vida, à liberdade, e à justiça. E,
através de um entendimento mútuo, do diálogo, procurarem se unir para erradicar
as situações de miséria, pobreza e exclusão e, no compromisso com um
desenvolvimento sustentável, garantir um mundo saudável para as gerações
presentes e futuras.
E nós, com nossa reflexão crítica,
podemos ajudar as religiões a descobrir as reais possibilidades de estabelecer
um processo comum onde a experiência religiosa, a vivência da fé, a
espiritualidade entendida como cultivo da relação com o divino, se tornam
forças vivas para a construção da paz. Se silenciarmos, se não questionarmos as
religiões, se não insistirmos para que mudem de postura, nos tornaremos
cúmplices de todo sangue inocente que escorre no mundo, como é o caso do que no
momento está sendo derramado no chão da Palestina. “Não haverá paz
entre as nações, se não existir paz entre as religiões. Não haverá paz entre as
religiões, se não existir diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre
as religiões, se não existirem padrões éticos globais. Nosso planeta não irá
sobreviver se não houver um ethos global, uma ética para o mundo inteiro” (Hans
KÜNG).
Fonte: Blog O Chamado
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