Temas diversos. Observar, pensar, sentir, fazer crítica construtiva e refletir sobre tudo que o mundo e a própria vida nos traz - é o meu propósito. Um pequeno espaço para uma visão subjetiva, talvez impregnada de utopia, mas, certamente, repleta de perguntas, questionamentos, dúvidas e buscas, que norteiam a vida de muitas pessoas nos dias de hoje.

As perguntas sobre a existência e a vida humana, sobre a fé, a Bíblia, a religião, a Igreja (sobretudo a Igreja Católica) e sobre a sociedade em que vivemos – me ajudam a buscar uma compreensão melhor desses assuntos, com a qual eu me identifico. Nessa busca, encontrando as melhores interpretações, análises e colocações – faço questão para compartilhá-las com os visitantes desta página.

Dedico este Blog de modo especial a todos os adolescentes e jovens cuja vida está cheia de indagações.
"Navegar em mar aberto, vivendo em graça ou não, inteiramente no poder de Deus..." (Soren Kierkegaard)

domingo, 27 de maio de 2012

Ave Maria do povo, Ave Maria de Deus!


As reflexões sobre a veneração de Nossa Senhora Maria, Mãe de Jesus, pelos católicos no mundo inteiro (as últimas 8 postagens),  não seriam completas  sem trazer aqui também alguns questionamentos.  É muito importante percebermos  que um olhar crítico sobre certos assuntos pode nos ajudar a construir uma opinião mais equilibrada e verdadeira sobre eles.

Trago aqui, para o blog  INDAGAÇÕES, um excelente texto da professora Sofia S. Tavares¹,  intitulado “ Maria de Nazaré”, que foi o tema da palestra proferida pela autora no XVIII Encontro Nacional de Padres casados e suas Famílias, em Ribeirão Preto (SP), em 14-01-2010.²

Assim, teremos  uma oportunidade de nos debruçarmos sobre alguns aspectos, que, talvez, passem  despercebidos para muita gente, mas  são importantes para  quem procura  a purificar a sua fé e está em constante busca da verdade vinda de Deus.
Não  deixe de ler. 
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[Para aproveitar melhor as reflexões sobre Maria, é aconselhável  ler desde o início todas as postagens sobre este assunto (começo no dia 17 de maio de 2012: Sobre culto à Nossa Senhora e aos Santos na religião Católica).]


Maria de Nazaré 
por Sofia S. Tavares¹

Fomos habituados, desde nossa infância, em nossas famílias e ambientes católicos, a uma imensidão de nomes e títulos dados a Maria de Nazaré: Senhora da Conceição, do Amparo, da Guia, do Ó, do Bom Parto, da Mó, de Aparecida, de Lourdes, de Fátima, de Medjugorge, etc.

Em rápida busca na internet, por exemplo, consta cerca de trezentos diferentes títulos dados a Maria. É fácil notar que, na cabeça do povo, dos cristãos médios, não há clareza nem certeza se trata de uma ou de várias Nossas Senhoras.

Quem teve a oportunidade de visitar Fátima, Lourdes, Aparecida e outros santuários marianos, teve, com certeza, a oportunidade de observar a intensa fé do povo cristão em Maria, expressa em procissões, terços e, muito frequentemente, em promessas.

Numa análise simples, parece bem mais forte a fé e a crença no sofrimento do fiel promitente (ir a Fátima a pé, andando centenas de quilômetros, andar centenas de metros de joelhos nas praças dos santuários ou dando voltas em torno de igrejas e capelas, subir escadas de joelhos, etc.), do que na gratuidade do amor salvífico de Cristo. Afinal, foi Ele que deu por nós sua vida e todo o seu sangue em sacrifício perfeito, único, infinito e definitivo. E a salvação é um dom gratuito dele, não fruto de nossas penitências.

Dá também para notar que o culto a Maria e a Mariologia a ele subjacente, tão clara e explicitamente aceitos e tão fortemente difundidos e inculcados nos escritos dos santos, dos papas e bispos, na formação dos seminários e casas religiosas, bem como nas homilias e sermões, deixam no ar bastantes dúvidas teológicas.

Frases como: “sobre Maria nunca se dirá o suficiente”, “quem reza todas as noites três ave-marias está salvo”, “Maria é medianeira de todas as graças”, bem como todas as invocações da Ladainha de Nossa Senhora deixam qualquer cristão com um mínimo de senso crítico com as orelhas em pé e se perguntando para onde foi a centralidade teológico-litúrgica do Mistério de Cristo, único Salvador e único Mediador.

Perante toda essa confusão teológica e cultual, para tentar esclarecer um pouco as ideias básicas da Mariologia escolhi, para expor neste Encontro Nacional do Movimento dos Padres Casados e suas Famílias -MPC- dizer algumas coisas simples e básicas sobre Maria de Nazaré e comparar a Maria dos Evangelhos com a Maria da piedade católica.

Maria de Nazaré tornou-se, na Igreja, uma mulher símbolo da pureza e virgindade, um modelo de devoção exacerbado, bem longe da Maria apresentada pelo Evangelista, que, atenta e preocupada com a felicidade dos noivos, avisa Jesus de que o vinho ia acabar, nas bodas de Caná, e, mesmo com a resposta evasiva de Jesus, diz com firmeza: “Façam o que ele mandar” (Jo 2,5).

Ela, com certeza, não entendia muita coisa do que fazia e dizia o seu Filho, desde o desaparecimento dele em Jerusalém, aos 12 anos, quando, voltando à cidade santa, após um dia de viagem, à procura dele, o encontraram no templo “sentado entre os doutores, ouvido-os e interrogando-os” (Lc 2, 47).
E ele, interpelado por ela, lhe deu uma resposta meio atravessada, afirmando categoricamente sua relação essencial e primordial com seu Pai… E “sua mãe conservava todas essas coisas em seu coração…” (Lc 2, 48-51).

Quero, então, nesta tarde, pegar esta figura bíblica da mulher nazarena, Maria, que hoje, a meu ver, está sendo usada de forma errônea: ora excessivamente venerada e quase adorada pelos católicos pouco evangelizados e catequizados, ora desconsiderada e ultrajada pelos protestantes, chegando ela, a mãe do Salvador, a ser disputada pelos exageros extremistas de ambas as partes.

Lamentavelmente Maria é ponto de discórdia na Igreja de Cristo, hoje separada em vários ramos, todos eles com algo de verdade, de autenticidade e de valores, mas também de limites, contradições e erros doutrinais e, sobretudo, práticos: morais, pastorais, relacionais, etc.

Maria, foi a mulher mais exaltada sobre a terra, a bem-aventurada, no dizer de  Lc 1, 45, a mãe de Deus, conforme o anjo afirmou em Lc 1, 35b: “o santo que vai nascer de você será chamado Filho de Deus”. 

Mãe de Deus é, para Maria, o título por excelência, o mais elevado no elenco das centenas de nomes por ela recebida nestes dois milênios de Cristianismo.

Por isso ela não precisa ser envolvida nos mitos de Fátima, Lourdes, Medjugorie, etc., em supostas aparições em que apenas manda rezar e fazer penitência, não adverte a humanidade para fazer a vontade de seu filho no serviço amoroso e solidário aos irmãos, conforme Mateus propõe em 25, 31-46: tive fome, tive sede, estive nu, estive preso…

A mulher, virgem prometida em casamento a um homem chamado José, (Lc 1, 27), sentiu-se suficientemente livre para desafiar sua cultura, seus costumes e tradições, correr o risco de ser morta por apedrejamento, conforme a lei do seu povo, e aceitar o anúncio “sacrílego” do Anjo Gabriel para ser a mãe do Salvador.

Por que, então, reduzi-la, como fazem tantos segmentos católicos, a apenas um símbolo e modelo de pureza e virgindade, títulos pobres e desumanizantes, que ampliam a distância dela em relação às mulheres comuns de todas as índoles, de todos os tempos e de todo a terra, e que levam a vê-la como apenas uma imagem de mulher santa, inatingível?

Pior ainda: de uma piedade piegas, nada teológica nem bíblica, eternamente lacrimosa, pessimista e ameaçadora com as penas do inferno, sempre se queixando que seu Filho está muito triste e sofrendo muito e que é preciso rezar e fazer penitência para desagravar seu Sagrado Coração…

Aquela mulher que o evangelho nos mostra, toma o partido dos pobres no magnificat: “derruba do trono os poderosos e eleva os humildes”, (Lc 1,52). Essa Maria da vilazinha de Nazaré fica três meses com Isabel para lhe dar apoio na sua gravidez de risco. Numa convivência de duas mulheres vivendo a mesma situação de gerar um filho em condições fora da normalidade, em idade oposta, uma idosa demais, outra nova demais. Essa mulher pobre do povo, decidida, espera que os famintos se encham de bens (Lc 1,53), acredita num mundo melhor. Despojada, acompanha seu filho; sábia, espera, na fé, a clareza da missão de Jesus, que não é evidente para ela; forte, conhece de perto a pobreza e o sofrimento, a fuga e o exílio (Mt 2, 13-23). Enfim, essa mulher pé no chão, sensata, sensível, corajosa, amorosa, preocupada com os outros. 

Mas que, pela sentimentalidade, leniência pastoral e fraqueza teológica de quem devia cuidar da sadia fé do povo, há muito se perdeu para o mundo das aparições miraculosas, melosas e que induzem a uma piedade intimista, sem esperança, sem elã apostólico e sem alegria.  Bem longe do que dela pensa e propõe Leonardo Boff em “O rosto materno de Deus”: Maria se patenteia como mulher libertadora. Prolonga a linhagem das mulheres heróicas do Antigo Testamento que se haviam comprometido com a justiça de Deus e dos seres humanos como Débora (Jz 4-5) ou Judite (13,20; 15,9).

Sob o ponto de vista devocional, não há hoje nada que se compare com a nazarena original, a Maria dos evangelhos, reconhecida com primeira cristã e primeira discípula do seu Filho Jesus.

O conteúdo crítico e libertário presente e tão claro no canto do Magnificat, foi totalmente esvaziado.

A Maria mulher corajosa, forte, comprometida com o bem dos outros em suas necessidades (visita a Isabel, preocupação com a vergonha dos noivos nas bodas de Caná), comprometida com as injustiças histórico-sociais contra os pobres, deu lugar aos fenômenos de provável histeria coletiva de Lourdes, Fátima e, ultimamente, ao estranhíssimo e rentável fenômeno das aparições sem fim, as de Medjugorge, que já duram décadas, como se revelação divina estivesse incompleta no Novo Testamento e não tivesse terminado no Apocalipse.

Perante fenômenos como esses, como não dar razão à grave, mas tantas vezes verdadeira real e comum acusação de Feuerbach e de Marx, de que a Religião é o ópio do povo, a droga que anestesia as mentes em busca de fuga do sofrimento, de refúgio pessoal, e conforto e deleite para suas almas?

Em vez de uma espiritualidade sólida bem baseada na Bíblia e na sadia Tradição, com conotação universal, é brindados com espiritualidades superficiais, insossas, sentimentalistas, muito personalistas e intimistas, sem nenhuma relação direta com a construção do Reino de Deus e a melhoria da Justiça, da Solidariedade e da Fraternidade humanas.

A nossa Igreja está hoje cheia de pequenas seitas de cunho conservador, inclusive o marianismo avulso, que nada tem a ver com a Igreja, Cristo e o Reino de Deus; que se alimenta de procissões, de visita de imagem de Fátima, de casa em casa, conduzida pelos chamados Arautos do Evangelho, vestidos a caráter. E que nossos bispos vão aceitando ou até incentivando.

A minha fala não pretende tirar o real valor daquela que “achou graça diante de Deus” e que foi a escolhida, a preferida para trazer à terra o Filho do Altíssimo. Minha intenção não é endeusá-la, mas simplesmente fazer compreender sua participação na História da Salvação: como aquela que entrega seu Filho para a humanidade, aquela que diz:  - Façam tudo o que ele vos disser.

Títulos como Medianeira, Co-redentora, etc., não só contribuem muito para uma grande confusão teológica (há um só Mediador e um só Redentor), mas também atrapalham muito o diálogo ecumênico.

Alguém disse, recentemente, que a Igreja, de há uns séculos para cá, em vez de seguir e pregar a Boa Nova de Cristo, seu único fundamento, e de construir o Reino de Deus, guiada pelo Espírito Santo, se desviou e fundou outra Igreja, baseada em dois grandes princípios: o Papa e a Virgem Maria.

A afetividade masculina sempre foi e continua a ser um grave problema mal resolvido em homens celibatários à força que, muito dificilmente chegam a uma boa integração humana e à maturidade afetivo-sexual. Por isso, alienar essa tremenda força na figura da puríssima, virginal e inatingível Mãe de Deus e quase semideusa Maria, foi, muito provavelmente, uma boa estratégia para não enfrentar o sério problema do Poder na Igreja, que, sem o cato elibobrigatório de seus dirigentes, seria quase impossível gerir com eficiência. Nesse sentido, a construção ideológica de um marianismo exacerbado na Igreja, foi e continua a ser muito conveniente à forte estrutura de poder em que continua a se alicerçar a Igreja Romana.

Será que este endeusamento do celibato, não está profundamente ligado ao medo e pavor de amar uma mulher de verdade e, nessa convivência, ter de repartir com o gênero feminino os eternamente tão bem guardados “valores” de um machismo que continua se eternizando na hierarquia católica?

O medo de ter de repartir os bens materiais da Igreja com esposas e filhos de clérigos, argumento aduzido por alguns como o mais forte para explicar o apego ilimitado da Igreja ao celibato obrigatório da hierarquia, é bem mais fraco do que o pavor de ter de repartir afetos, corpo e alma com uma mulher que, queiramos ou não, iria querer mandar também: a não ser que, como os muçulmanos, afirmemos que homem vale mais do que a mulher…

Se isso for verdade, está explicado o profundo e irracional apego ao celibato obrigatório do clero e a ojeriza dos papas, cardeais, bispos e alguns padres ao celibato opcional e seu ódio ao casamento dos padres e à ordenação de mulheres.  E não adianta continuar a conversa para boi dormir de que “o celibato é muito conveniente ao estado sacerdotal”. A história, a sociologia e a psicologia, sem falar dos imensos e sempre mais comuns e universais escândalos sexuais do clero, estão aí, bem patentes, para negarem essa afirmação puramente ideológica, para não dizer mentirosa e de má fé.

Fica, assim, mais que evidente que o MPC é, sim, um movimento profundamente profético e desestabilizador do “status quo” dessa hierarquia que, em vez de se fundamentar na simplicidade dos Evangelhos, preferiu, a partir do séc. IV, se fundamentar e se estruturar conforme os costumes, ritos e modismos do Império Romano: basílicas (casa do rei!), monsenhores, bispos, cardeais e papa com vestes suntuosas e de cores berrantes, avantajada cruz de ouro no peito, templos, príncipes, poder temporal, eliminação dos inimigos, dos que pensavam diferente, etc.

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¹ Sofia S. Tavares. Licenciada e Especialista em Filosofia. Formada em Teologia.
Professora aposentada de UFMA
² Este texto foi revisado pela autora para publicação. Uso livre, citando a fonte.


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